O charme dos dias nublados

O charme dos dias nublados

Há quem diga que os dias nublados são tristes. Eu discordo. São apenas dias que nascem pedindo um pouco de discrição. De calma.

Tempo nublado: foto gratuita do Pixabay.

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Há quem diga que os dias nublados são tristes. Quando eles aparecem em poemas escritos, ou cantados, ou pintados - apenas sonhados? -, costumam falar de sentimentos tão belos quando doídos. Saudades insistentes com pinceladas de esperança. Dores agradáveis, ou nem tanto, da alma inquieta. Quiçá algum arrependimento com doses de alívio (sim, acreditem, volta e meia há este arrepedimento aliviado no mau costume de sermos racionais justo no auge da melhor irracionalidade que podemos ter). Ou mesmo de desespero.

Frequentemente, tornam-se a lembrança de um amor que se perdeu. Que, com sua saída, retirou a força dos pincéis e calou as cores desta tela que pintamos sem parar e compõe o “background” da nossa vida.

Dias nublados. Dias cinzas. Dias tristes.

Eu discordo.

São apenas dias que nascem pedindo um pouco de discrição. De calma. Pedindo que seguremos a alma em brasa, o coração irrequieto, os ódios e as paixões, as cismas e as falsas certezas. E mergulhemos dentro de nós mesmos, atrás de nossos tesouros escondidos. Sim, temos muitos tesouros no fundo de nós, restos de naufrágios que foram as nossas vivências, nossos traumas, amores, indignações, alegrias e decepções. É o que nos forma. Precisamos resgatar esses nossos tesouros, volta e meia, para descobrirmos quais são as nossas verdadeiras riquezas e nos permitirmos seguir com essa cara de nós mesmos, única, sem imitações.

Eu tenho um apreço especial pelos dias nublados desde menino. Desde que não sejam abafados, claro. Nunca me dei muito bem com o calor.

Lembro que na casa de um tio, menino, eu gostava de ouvir os discos que ele tinha aos montes e eu já gostava, mas meu pai nunca comprava. Uma deles tinha uma garota de cabelos loiros, franjas na testa e um olhar desafiador. Eu achava ela meio parecida com uma prima do interior. Era o primeiro LP de Rita Lee, Build Up, e tinha a mesma idade que eu. Eu gostava de colocar no toca-discos para ver o logotipo da Polydor rodopiar enquanto eu curtia músicas como “Viagem ao fundo de mim” e “Tempo nublado”, que dizia assim: “O tempo nublado/A minha voz chamando/ Pelo seu sorriso/ Que foi com o sol/ Onde estará você, meu amor?”.

Eu não achava legal aquilo. Tinha vontade de dizer para a moça cantora que, enfim, o tempo nublado não tinha culpa pelo amor dela ter ido embora levando seu sorriso.

É, eu era uma criança que precisaria ter sido estudada. Não batia bem.

Mas é que alguém me diza que nos dias nublados a gente devia se esconder, ficar em casa, se jogar sob as cobertas, ler, ver um filme, pensar na vida. Pois eu queria estar na rua e sentir aquele frescor que parecia fazer um carinho na alma.

Já estávamos nos anos 80, e eu era um adolescente roqueiro e meio que chatíssimamente rebelde (segundo alguns integrantes da minha família) quando encontrei no centro de Porto Alegre um disco que havia sido lançado por aqueles dias. Era “Revolta dos Dândis”, do Engenheiros do Hawai. Comprei por causa do encarte das letras onde os caras da banda posavam em fotos num belo dia nublado. “Minha cara!”, pensei. E só depois é que fui conhecer as letras daquelas músicas e que tornaram, aquele LP, o grande disco da minha vida.

Tá, não sou nenhum “solfóbico”. Aprecio (mas com moderação) o os dias abertos, ensolarados, ainda mais com minhas crianças brincando e tals.

Só que hoje, antes de escrever este texto, ao ver o dia amanhecer nublado, decidi ir para o trabalho pedalando e sentindo o frescor de um céu gris. Num dia assim, gosto de pensar em tudo que me fez mal e banhar esses episódios com doses generosas de perdão. Gosto de lembrar do que me fez bem e concluir que viver se justifica por isto, pelos bons momentos.

O dia me cerca e, num instante, é uma breve garoa que se ensaia, noutro o vento que me faz um chamego mais decidido no rosto sem máscara. É um dia charmoso, o dia nublado. Gosto dele.

Tá, sou um adulto que também precisa ser estudado. Fazer o quê.

 


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