Anjos massacrados

Anjos massacrados

Oscar Bessi

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Em Triunfo, no Rio Grande do Sul, um bebê foi encontrado morto dentro de uma bacia, jogada num matagal. Nem os policiais que atenderam ao chamado podiam acreditar no que viam. O horror humano, a pior e mais cruel face da nossa malfadada racionalidade. E a gente ainda não teve tempo de digerir o triste episódio do menino que vivia sob intensa tortura e, brutalmente morto pela mãe, foi jogado no rio. Nem tivemos tempo, também, de respirar melhor após saber que uma mãe, que deu à luz dentro de um ônibus, escondida, arremessou seu bebê pela janela sob um frio intenso. Muito menos conseguimos entender como o próprio tio incentivou, e filmou, um falso professor de artes marciais e outras crianças a baterem com a cabeça de um menino de apenas 7 anos quase trinta vezes no chão, só para provar à mãe do pequeno “que ele não servia para aquela luta”. Nós nunca temos tempo para tentar lidar com o assombro. Com o asco. Com a tristeza que nos assola a cada caso de brutalidade contra uma criança.

Segundo a Unicef, no Brasil quase 40 crianças e adolescentes são assassinados todos os dias. Muitos Conselhos Tutelares chegam a afirmar que os casos de denúncia de violência contra menores subiram mais de 50% durante a pandemia no Brasil. Um dos principais fatores seria o despreparo de famílias, sem qualquer estrutura, para lidar com o desemprego, a falta de renda e a elevação do custo de vida que o país enfrenta. E o fechamento das escolas acaba contribuindo para que essa vulnerabilidade se maximize. Mas não é só isso. A violência nos ronda, faminta. O medo. E modismos nocivos como intolerância, desrespeito generalizado e abafamento de vozes que denunciam. Além de uma perigosa cultura machista e sexista que incentiva ao abuso de toda ordem. A situação só é pior em países devastados por guerras, como a Síria, onde só os casos de violência sexual contra crianças praticamente dobraram na pandemia.

Tudo pode ser passageiro. Pandemia, crise econômica, alta no desemprego, miséria. Mas há algo que não creio ser tão efêmero: nossa desumanização latente. A era da tecnologia trouxe ao ser humano soluções mágicas e rápidas para dilemas outrora complexos. Mas, por outro lado, cobra o preço alto da frivolidade. Da cultura do supérfluo, do rápido e do descartável. Da imagem instantânea, da irrelevância da memória, da dispensabilidade do verídico, da desnecessidade do intenso, do profundo, da reflexão. Não é preciso se importar, pensar no outro, lembrar. Não é preciso sequer pensar. Basta consumir e parecer. Basta correr. E vale atropelar. Não creio que esses novos valores despidos de humanidade sejam passageiros. Como creio que aí está o cerne da barbárie que parecemos ressuscitar de um período pré-civilizatório.


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