Crianças

Crianças

A gente que é pai, ou mãe, tem dificuldade em entender que monstruosidade, ou doença, transforma seres humanos em feras assassinas de crianças.

publicidade

(publicado na edição impressa de 30 de maio de 2020)


Nossa coluna está de aniversário. Dez anos. Uma década de bate-papos, trocas com os leitores e mergulhos no outro lado dos fatos. O lado das pessoas. Anônimas ou não. Profissionais de segurança ou vítimas. Prometi ao Chefe da Editoria de Polícia, meu querido amigo Paulo Tavares, um texto bacana. Que fosse um presente. Que falasse sobre esperança e paz. Sobre essa mania teimosa que temos de acreditar que pode haver um mundo melhor. E que falasse dessa proposta ousada do Correio do Povo, que talvez não encontre similar no país inteiro, de humanizar a sempre dura página policial. Cheguei a rabiscar temas. Frases. Anotações. Engatilhei pensamentos convictos. Ansioso como na estreia, naquele maio de 2010, onde me sentia um ninguém que, de repente, escrevia num jornal gigante em história, alcance e importância. Dez anos. Precisava ser uma coluna especial.

Mas aí a polícia gaúcha encontrou o corpo do pequeno Rafael. O menino que até então se acreditava desaparecido. E que a gente torcia para que estivesse só vivendo alguma aventura juvenil com amigos. Mas a Polícia Civil gaúcha tem faro. E deu importância àquele caso que talvez não tenha chamado muito a atenção, em meio às brigas políticas e ao novo coronavírus que avança. Os policiais não desistiram daquela criança sem sobrenome famoso e priorizou o ser humano que poderia estar em perigo. Foi atrás. Mas nos trouxe a pior notícia que se poderia esperar: Rafael estava morto. E a própria mãe, que antes pedia ajuda para encontrá-lo, confessava ser a autora desse crime incompreensível. Triste começo de semana. Rafael foi encontrado pelos policiais enrolado num lençol, dentro de uma caixa, em uma casa cujos donos estão viajando, na cidade de Planalto. Então tudo virou do avesso. Rasguei minhas anotações. Ouvi a entrevista do Delegado Joeberth Nunes. E, policial velho e acostumado com os absurdos humanos, chorei.

A gente que é pai, ou mãe, tem dificuldade em entender que monstruosidade, ou doença, transforma seres humanos em feras assassinas de crianças. Rafael, Bernardo, João Hélio, Isabella Nardoni. Carlinhos, Aracelli. O bebê de Erechim. E mais tantos outros, milhares de vítimas. Segundo a Unicef, são mais de trinta crianças assassinadas a cada dia no Brasil. Todos os dias. Sem trégua. Sem que exista uma guerra oficialmente declarada. Uns chocam a opinião pública, porque ficamos sabendo, nos compadecemos e choramos e pedimos justiça e mais amor. Em vão. Outros partem invisíveis. Ninguém chora suas mortes. E há os que sobrevivem, os que escapam, mas pagam o preço de tudo que sofreram e fazem com que outros paguem o preço também, inocentes ou não. Dez anos. Esta coluna é uma criança. Que chora com os leitores pelas crianças do nosso país.


Mais Lidas

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895