Um crime sórdido

Um crime sórdido

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Dias estranhos. O medo coletivo deveria trazer solidariedade. Amparo. União. Além daquela coisa tão natural nos outros animais chamada “preservação da espécie”. O tatu, por exemplo, para sobreviver se transforma em bola. O camaleão dá um jeito de ficar invisível. O gambá solta aquele cheirinho desagradável. A lagartixa finge que perdeu o rabo. O ser humano poderia fingir ser, digamos, humano. Usar o potencial de sua inteligência e sensibilidade, tão aguçadas na hora de fabricar armas e novas versões de smartphones, para fazer valer a vitória da vida. Seria incrível. Somos o único animal com o superpoder de pensar. E fazemos tudo errado. Esta pandemia precisa ser um marco de novas atitudes. Nas sociedades e na alma de cada um. Outras prioridades. Outras metas. E outro jeito de conduzir o coletivo. Não há capitão em navio que afunda. Há apenas náufragos.

O inimigo agora é inédito, impiedoso e invisível. Claro que há os grupos de risco. Mas o covid-19 não negocia. Não olha idade, cor, credo ou classe social na hora de escolher suas vítimas. Pode ser o empresário dono de jatinhos particulares, pode ser o engraxate ali na esquina. O vírus nos iguala em nossas tão concretadas desigualdades. A única verdade absoluta é o cuidado como forma de proteção. Em um único dia desta semana morreu, no Brasil, quase que o triplo de pessoas da tragédia em Brumadinho. Que tanto nos abalou. Um dia, de tantos dias já, com mortes demais. Com tantos dias que ainda teremos pela frente. Dias difíceis, de alarme e de dor. E de mortos. Que jamais serão apenas um amontoado de números, não, serão sempre pessoas, as nossas pessoas, as nossas famílias. Ninguém escapará das lágrimas que se espalham mundo afora, mesmo que elas banhem rostos solitários em tempos de isolamento.

Tudo o que não precisamos, num momento como este, é usar o pior lado da nossa racionalidade. Seja ao ignorar - até zombar! - dos cuidados tão solicitados, repetidos, insistidos e comprovados pela ciência, seja ao chamar agressões físicas de manifesto ou usar o medo de tantos para aplicar golpes. Como a Operação Anticorpo, da Polícia Civil gaúcha, nos mostrou. Eis o quanto podemos ser brutais e abjetos em nome da ganância. O bicho-homem faz aquilo que nenhuma outra espécie animal faz: agride gratuita e traiçoeiramente o seu próprio semelhante sem qualquer explicação, afora lucro. Vacinas falsas contra a gripe. Bah. Idosos e crianças correndo atrás de proteção com a proximidade do inverno e recebendo sabe-se lá o quê nas veias. Que os policiais sejam implacáveis na busca de todos os culpados por estes crimes. Dos que o conceberam aos que contribuíram com um mínimo gesto nesta farsa. E quem soube e fechou os olhos e a boca, cúmplice. Nestes dias tensos e tristes, nada explica a sordidez do que foi feito.

Coluna da edição impressa de 09/05/20.


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