Não há morte aceitável

Não há morte aceitável

A hipocrisia não é bala perdida. Ela tem alvos diários e mata muito inocente.

Oscar Bessi

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Crônica da edição impressa de sábado, 28 de setembro de 2019.

 

No Brasil, 30 crianças e adolescentes são mortos por dia, em média. Todos vítimas de homicídio. Não são balas perdidas, são tiros com alvo certeiro. Uma ínfima parcela é vítima de acidente, a maioria foi morta de forma intencional, foi executada. É uma cidade inteira de crianças e adolescentes que simplesmente são assassinadas sem chance de se defender. Os dados estão disponíveis na página da Unicef para quem desconfia dos números. Já que cada um fala a verdade como lhe interessa, desprezando o caleidoscópio de culpas e intervenções que qualquer debate exige. Tá, convenhamos que de debates sem atitude estamos fartos. Discorrer teoremas iluminados sobre a rebimboca da parafuseta pode ser charmoso, mas já ficou cansativo de tão inútil. São milhares de mortes todo ano, há muitos anos, na verdade tantos anos que já poderia ter sido feito alguma mínima coisa. Não foi. Segue tudo como está e cada vez pior. No Brasil se mata mais inocentes do que na Síria ou no Iraque.

O crime impõe tiranias a ferro e fogo em comunidades periféricas. E a impunidade segue resoluta, ancorada e alimentada por uma cantilena abstrata, desconectada da realidade e aurificada por castelos sustentados pelo suor bárbaro do povão, fadado a trabalhar uma vida inteira sem direito a descanso para sustentar a farra de uma nobreza que, pasmem, só segue em seus castelos porque os próprios escravos a conduzem para lá. E enquanto encenam guerras sobre cores de bandeiras e apelam para discursos febris e fanáticos, um tentando pegar o poder do outro para se refestelar com sua turma de nababos, inventam mais impostos para que a plebe pague seus luxos. Que triste. Enquanto isto, lá do lado de fora das mansões, a guerra fratricida nos leva crianças, nos leva policiais, esfacela famílias.

Na intersecção das tiranias, o óbvio. O capital financia tudo. Não pense que é um bandido metido a famoso e mau, quase analfabeto e que disfarça a ausência de dentes com correntes de ouro, que tem a liberdade de ir e vir pelos corredores do poder e criar o financiamento para toda esta máquina enferrujada que nos esmaga. Ele é só a ponta útil. Sai um, entra outro. Como acontece até com os boqueiros da droga. Esse enxugar de gelo dá lucro para muita gente. Financia muita caminhada de sucesso que nos ilude. E mata muito inocente. Não há morte aceitável. Não há como entender um Estado que mata. Mas também não dá para entender uma sociedade que aceita, tolera, participa e serve de instrumento para essa engrenagem mortal que só nos esmaga cá embaixo. A hipocrisia não é bala perdida. Ela tem alvos diários e mata muito inocente.


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