As guerras de Amado

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As guerras de Amado


Episódio 1: A pista contrária

 

Dezembro, pouco mais de três da tarde.

- Mantém!

A ordem foi seca. No rádio, a voz da soldado da sala de operações repetia a placa da Range Rover sport, preta, 2017. “Motorzão, vai ser foda pegar”, resmungou Luíza. “Assis Brasil tá sempre trancada, comando, por aqui não vai render!”, Paulo gritava, como sempre que ficava tenso, a musculatura explodindo sob a farda, as mãos grudadas no fuzil pronto para entrar em ação, como se quisesse pular pela janela traseira do carro. Na frente dele, Nestor tirou a mão do volante, ajeitou outra vez a pistola sob a coxa e, enquanto ziguezagueava entre veículos de todos os tamanhos na máxima velocidade que conseguia, passou os dedos inquietos pelo bigode grisalho.

- Vamos pro bairro, sargento.

Amado respondeu sem olhar para o motorista.

- Não. Todas as viaturas já saíram da avenida.

- Eles não vêm por aqui! Muito congestionado!

- Também acho, sargento. Eles só pegam a Assis se forem loucos. - opinou Luíza.

Os olhos de Amado percorriam as duas vias da avenida Assis Brasil e os corredores de ônibus.

- Ou se sabem que pensaremos assim.

Nestor respirou fundo. Teve vontade de chamar o comandante da patrulha de cabeça dura, de dizer que ali na capital não era como o fim de mundo de onde ele viera. Onde mesmo? Macega? Isso lá era nome de lugar? Por isso repetia, era contra oficiais e sargentos do interior caírem no comando de patrulhas especiais. Ali não era lugar para se pensar na morte da bezerra. Mas se havia aprendido alguma coisa nos seus vinte e tantos anos de caserna, é que críticas a superiores nunca eram bem vindas. E ainda não sabia exatamente qual era a do Sargento Amado. O homem era muito fechado em si. "Tem coisa aí nesse corpo", cochichou com Paulo, uma semana antes. Haviam sido apresentados ao novo sargento e se preparavam para entrar de serviço. Um amigo da inteligência ficou de dar uma pesquisada na vida pregressa daquele homem.

Uma guarnição informou que avistara o veículo ingressando na avenida dos Industriários, mas não foi possível o acompanhamento devido ao trânsito. Amado apanhou o celular do bolso do colete tático e foi breve.

- Pede pro pessoal da EPTC ficar de olho nas câmeras da Assis Brasil. – e repetiu os dados da Range Rover, pedindo que lhe ligasse diretamente, caso visse algo.

- Pede pra lhe mandar pelo whats, sargento.

- Não olho celular no meio de uma ocorrência. Não quero levar um tiro na cabeça por distração.

Fez-se um silêncio pesado. Até que Nestor sentiu a viatura tocar o espelho de um Idea parado na sinaleira. “Arranca o espelho dele e vai precisar de uns dois salários pra pagar o prejuízo, Velho!”, brincou Luíza. O motorista respirou fundo.

- Sei o que tô fazendo, guria.

- Calma. Não tô te questionando.

- Só acho que tínhamos que pegar a Sertório.

- Bah! Também acho, sargento. – berrou Paulo.

- Pra quê gritar, negão?

- Epa! Racismo agora, no meio da correria, é? Vai ser assim, então? Aproveitando que tô distraído?

Ela riu.

- Ah, tá. Muito branca que eu sou.

- Pra mim, é. Até demais.

- Minha pele não é pra teu bico. E para de berrar no meu ouvido!

- Faz concurso pra sargento, guria. Daí senta no banco da frente.

- Vai te catar, negão!

- Ó! Depois vou apresentar uma queixa contra essa novata metida, sargento.

- Tá. Eu também, sargento. Por assédio.

- Assédio? Pois eu preferia...

- Calem a boca, cacete!

Amado finalmente encarou Nestor. Mesmo conhecendo-o pouco, sabia não ser comum o veterano se irritar daquele jeito. E ele estava mais tenso do que de costume.

- Desculpem.

- A gente só tava brincando, cara. Faz bem pra adrenalina. - Paulo tinha baixado o tom de voz.

- É que eu não quero deixar esses vagabundos escaparem de novo.

- Não vão escapar, Nestor. - Amado tinha os olhos fixos no movimento de carros à frente.

- Todo dia metendo aqui na região, sargento. Tá ficando chato. E...

- Não vão escapar, eu te disse. Olha lá!

Amado apontou o trecho de avenida logo à frente. Quase na esquina com a Avenida do Forte, na pista contrária, uma Range Rover preta dançou perigosamente ao tentar forçar a ultrapassagem de uma lotação pela direita.

(continua...)

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