Nossa mais nova (velha) tragédia ambiental

Nossa mais nova (velha) tragédia ambiental

Em novos dias de temporais, inundações, medo e apreensão, é inevitável refletir sobre o que estamos fazendo com a natureza. E como ela, aturdida, reage contra nós.

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Moro numa rua sem asfalto. É um calçamento antipático, irregular, com seus buracos e pontas de pedras tão salientes, e agressivas, que mais parecem predadores à espera da próxima vítima, seja ela um pneu ou um andarilho desavisado. Ainda assim, sou dos poucos moradores que rechaça a ideia de que a asfaltem. Não quero. Prefiro a lentidão da irregularidade aos efeitos do calçamento padrão desse tal "progresso" desejado por todos. A começar pela velocidade dos veículos. Motorista brasileiro se vê num asfalto e já pensa estar numa pista de Fórmula 1. Pisa fundo. E aí se aceleram também nossos temores, nossas crianças perdem o direito de voltar a pé do colégio sem medo, atravessar a rua se torna quase impossível aos idosos, e por aí vai. As ruas de asfalto são agressivas. E excludentes. E violentas. Não gosto e ponto final.

Mas o que me preocupa, mesmo, são os dias de chuva. Nossa urbanização desmedida tem no asfalto um dos seus ícones negativos. Asfalto não absorve as águas, que transformam avenidas em rios, ruelas em corredeiras violentas. Some-se ao lixo jogado sem qualquer critério em qualquer lugar, a incapacidade pública de lidar com limpeza de bueiros numa cidade de média para cima, e temos o quadro da dor.

O outro ponto negativo, claro, é o desmatamento urbano e rural que nos cerca sem qualquer pudor. Até nos comovemos com as clareiras aberta feito chagas da Amazônia, ou com as queimadas no Pantanal, cujas notícias nos assombram (mesmo que se repitam desde sempre). Mas aceitamos de bom grado a depredação sistemática e estética que dá o tom das nossas cidades, cada vez maiores, cada vez mais populosas e cada vez menos naturais. Apreciamos as grandes construções. A modernidade em aço, vidro e concreto. Nos orgulhamos do "avanço".

Há mais, muito mais, se pensarmos nos diversos tipos de poluição e no estilo de vida predatório que nós, homo sapiens, cultivamos. E multiplicamos. Não dá. Nada disso passa totalmente impune, como alguns devem pensar. A Natureza, agredida, vilipendiada, acuada, sempre cobra o seu preço. Dá o troco. Eis o que está acontecendo. Não é apenas o El Niño, ou La Niña, ou outro fenômeno climático esperado. É algo como a pneumonia que acomete o fumante: no terreno propício e cultivado para o trágico, devido ao mau costume do responsável, os resultados esperados só podem ser os piores.

Passamos os dias dando de ombros à questão climática. Considerando ela mais um papo chato ou, no máximo, uma curiosidade. Muito menos importante que os gols do brasileirão. Então, de repente, a Natureza dá piti, ronca grosso, manda ver sem piedade nas suas respostas e nos pegamos apavorados. Porque morre gente. Gente inocente. Porque estradas são partidas como se fossem enfeites de isopor. Porque construções se esfarelam e o fim do mundo deixa de ser uma ficção do cinema. Mas é o que plantamos. Como diz Ailton Krenak, nossa sociedade moderna vive no limite, consumindo de um jeito inconsciente, inescrupuloso e desenfreado tudo aquilo que sustenta a vida no planeta. Só uma reeducação profunda, com a aproximação do homem com seu meio, seria capaz de reverter essa marcha alegre e tola para o caos. O problema é que o caos já está aí, espie pela janela. Mas com cuidado. A natureza, atordoada, só rege, E não sabe o quanto de culpa carrega quem ela fere.


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