Um conto policial de Natal
O sargento e o soldado se entreolharam. O veterano arremangou a farda. E o que veio depois foi um desses tantos momentos em que a vida é celebrada na sua forma imperfeita e mágica, e simplesmente acontece, sem escolher onde ou quando, plena e iluminada, despida de rótulos e conceitos.
publicidade
Mais um 24 de dezembro. Cruzaram a avenida em velocidade baixa, de patrulhamento. O Papai Noel acenou num gesto cansado, a roupa empapada de suor e seguiu a balançar sua sineta de brinquedo e a sacola com logotipo da loja de roupas entre a multidão que se esbarrava na calçada. Dois meninos o abraçaram, ele fez um cafuné rápido em ambos, deu duas balas baratas e deixou claro que não queria mais muito assunto. Precisava gritar as ofertas do dia - último dia!, amiga, amigo, aproveite! - berrava, na disputa bizarra com motores, buzinas impacientes, jingle bells remix e aquelas músicas de péssimo gosto de sempre em seus decibéis insuportáveis das outras lojas do entorno. O vendedor de celulares de origem duvidosa viu a viatura e se escondeu. E o de bilhetes da loteria veio até a janela do motorista e perguntou se queriam, tinha só mais duas, quem sabe é um sinal, chefia, dá uma força, compra aí. O soldado pontou o painel com o nariz, 40 graus, mas ainda preferia farda e colete do que roupa de bom velhinho nesse forno da tarde, comentou. O sargento sorriu. “No meu tempo, novinho, viatura nem tinha ar, era o bafo da janela e nada mais”.
O soldado perguntou ao veterano onde ele passaria o Natal. O sargento respirou fundo, este ano as coisas não tinham saído exatamente como ele queria, mulher desempregada, doença da filha mais nova, banco comeu o décimo-terceiro por conta de um empréstimo para cirurgia, então nem iriam festejar muito, mas deu para um peru e presentes discretos. Ficariam em casa, fora do festão da família, mas tudo bem. O novato aquiesceu, compreensivo, e comentou, em quatro anos seria seu primeiro Natal de folga no horário da ceia, já que sairiam do turno às 22h. Família dele e da esposa vieram de Santiago e Caçapava, encomendaram chester e pudim, seria bom. “Que não dê uma ocorrência daquelas, então”, resmungou o sargento. E as horas se passaram entre calores insuportáveis e registros diversos. E quando faltava pouco, mas muito pouco mesmo para encerrar o turno de serviço, veio uma ocorrência pelo rádio. Perto dali, na vila que margeava o centro da cidade. A voz da despachante pedia brevidade.
O sargento ainda tentou argumentar, não havia outra viatura para atender? Não, correria, todas empenhadas, brigas, acidentes, furtos, roubos, ocorrências na espera. E quem ligou ao 190, desesperado, não conseguia contato com ninguém, nem ambulância. “Já fez um parto?”, o veterano perguntou ao novato, e fez sinal para que acelerasse. Ligaram a sirene. Entraram pelos becos escuros e estreitos. No casebre de uma peça só, lâmpada fraca, quase nada de móveis, uma mulher jovem gritava de dor enquanto pegavam sua mão. O calor insuportável multiplicava o odor encardido que asfixiava. “Por favor, moço, ajuda! O menino quer nascer!”. O sargento e o soldado se entreolharam. O veterano arremangou a farda. E o que veio depois foi um desses tantos momentos em que a vida é celebrada na sua forma imperfeita e mágica, e simplesmente acontece, sem escolher onde ou quando, plena e iluminada, despida de rótulos e conceitos.
Horas depois, no hospital, a médica agradeceu a intervenção pronta e correta dos policiais, e creditou a eles o nascimento saudável do menino. O soldado justificou mais uma ausência na ceia natalina à família, desligou o celular e perguntou ao superior o nome da mãe da criança. Para preencher os documentos da ocorrência, explicou. O sargento sorriu. “Maria, meu amigo. Ela se chama Maria”. E sem saber mais o que fazer, apenas apertou com força a mão do jovem colega, dizendo um feliz natal sussurrado, disfarçando umas lágrimas que teimavam em surgir no seu rosto calejado, mas feliz.