Uma mulher dilacerada

Uma mulher dilacerada

Após essa sucessão de aulas de “como não se importar com alguém”, o que se tem é mais uma mulher vítima de violência em nosso país. Mais uma dignidade dilacerada que tem no embrião nosso cacoete de não respeitar o outro. De não se importar. De cultuar apenas o próprio umbigo e desprezar o que está fora dele.

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Aviltante. Vergonhoso. Desumano. É o que sentimos ao ver o que flagraram as câmeras de segurança das ruas de Belo Horizonte, onde uma jovem de apenas 22 anos foi abandonada na rua por um motorista de aplicativo e, em seguida, carregada e violentada por outro homem. O que fizeram com essa moça é revoltante. Claro, o maior criminoso é, sempre será, o sujeito que cometeu a violência sexual. Que se deparou com uma menina desacordada, na rua, jogou ela sobre os seus ombros como se fosse um objeto qualquer, um saco de lixo, um fardo. E a carregou para um campo de futebol onde a violentou sem qualquer remorso. O que ele nega, com a incrível versão de que apenas foi levar a garota para um lugar mais seguro. Ah, claro. A versão do lobo às ovelhas. E o lugar era tão seguro que os exames periciais já comprovaram que ela sofreu violência sexual. E o distinto só retorna do “esconderijo” para onde arrastou a mulher quase quatro horas depois. Sozinho.

Se começarmos a analisar tudo o que aconteceu, vemos como o descaso pelo outro fala mais alto. “Teu problema é problema teu”. Era um show de pagode. E ela estava com amigos e colegas de trabalho, no plural. Mais de um. Ninguém se dispôs a acompanhá-la, mesmo vendo que ela estava já mal com a embriaguez da festa. Nem o sujeito que emprestou o celular para pedir um caro de aplicativo que a levasse embora. Segundo se soube, ele se defende dizendo que perguntou se ela queria dormir na casa dele, mas ela negou. Primeiro: se ela estava mal, com juízo prejudicado, nem deveria ser questionada, pois não estava em condições de decidir. Segundo: dormir na casa dele era a única opção que esse amigo podia oferecer? E levar ela embora, acompanhar, talvez até mesmo passar num hospital ou posto de saúde? Ah, compartilhou o itinerário do aplicativo com o irmão dela. Mas nem se preocupou em checar se o outro havia recebido a mensagem. Foi o gesto de descaso inicial. Ou não, pois talvez quando os “amigos” tivessem visto que ela estava ficando mal, pudessem ter feito com que ela parasse de beber, ou ter amparado, ajudado, qualquer coisa.

O próximo ato de descaso com o próximo, claro, foi do motorista. Como assim, cara-pálida? Abandonar uma passageira desacordada para se livrar do problema? Este foi ainda mais sério ao não ter levado para um atendimento médico, ou pedido orientação policial, pois seu gesto criou as condições para que o estuprador a encontrasse ali, jogada na rua, abandonada e, na cabeça doentia dele, “disponível”. Feito coisa qualquer. Após essa sucessão de aulas de “como não se importar com alguém”, o que se tem é mais uma mulher vítima de violência em nosso país. Mais uma dignidade dilacerada que tem no embrião nosso cacoete de não respeitar o outro. De não se importar. De cultuar apenas o próprio umbigo e desprezar o que está fora dele. Era para ser apenas uma noite de festa para uma menina feliz por estar entre amigos. Mas ela estava sozinha. E sua vida foi simplesmente pisoteada, destroçada, quando ela sequer sabia o que estava acontecendo, quando ela nem podia se defender. Triste. E imperdoável.

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