Quarto de criança e outras máscaras do crime

Quarto de criança e outras máscaras do crime

Oscar Bessi

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Apesar do esforço contínuo de alguns setores da sociedade - talvez por ingenuidade, talvez por ignorância ou, até mesmo, pelo vil interesse de quem ganha com isso -, o índice de crimes violentos, em geral, tem caído no RS. Sabemos muito bem qual é o fator fundamental para o sucesso de uma inversão histórica em números que, não muito tempo atrás, assustavam o cotidiano dos gaúchos: o trabalho intenso e incessante das forças de segurança pública. Mesmo que tenham que enfrentar, além dos inimigos bem armados das ruas, sempre dispostos a matar por qualquer motivo banal em seus negócios torpes, uma série de empecilhos surpreendentes criados nos birôs de quem deveria estar ao lado da lei. Ou, pelo menos, fazendo da lei um instrumento de proteção para o povo, e não de frustrações e ameaças. Eis que, quando um bandido recebe “autorização” do sistema para seguir sua senda de crimes livremente, sem temer as consequências disto, o que temos é uma ameaça clara à liberdade e ao coletivo. Aos pobres cidadãos comuns que defendem diariamente, com seu suor, o futuro desta sociedade. E sem grana para bancar segurança privada ou especial.

A cena da semana foi o bunker de traficantes descoberto pelos policiais gaúchos no Vale dos Sinos. Armas de guerra e um arsenal pronto para ceifar centenas de vidas. Tudo escondido num refúgio cujo acesso era o alçapão no quarto de uma criança. Imaginem com o que essa pobre criança conviveu, todo esse tempo, no ir e vir de bandidos armados em seu quarto. O lugar que deveria ser o refúgio dos seus sonhos, dos seus brinquedos, das suas fantasias e da sua visão ainda ingênua, pura e esperançosa do mundo. Nem isto o crime perdoa. Causa espanto? Talvez para alguém que viva em Nárnia (sem querer ofender o saudoso C. S. Lewis). Pergunte a qualquer um que conhece a realidade das ruas e saberá que traficantes, às pencas, tem instruído seus “boqueiros” a guardarem drogas no corpo de crianças, quase sempre seus próprios filhos, enquanto aguardam os clientes. Para evitar a revista policial e reverter qualquer prisão com denúncias de abuso de autoridade na audiência de custódia. Crianças estas que sofrem castigos físicos constantes para não colocarem o negócio do tráfico em risco. Crianças que sofrem abusos sexuais nunca denunciados. Crianças proibidas de viver antes mesmo de ter a chance de entender o que acontece ao seu redor.

O crime usa diversas máscaras para se disfarçar e atuar livre entre nós, multiplicando suas vítimas. Todo ano, dezenas de milhares de brasileiros, a maioria jovens, negros e pobres, são assassinados. E o tráfico de drogas é o autor da esmagadora maioria desses crimes bárbaros. Sem contar os latrocínios e feminicídios decorrentes. Ou alguém pensa que arsenais de guerra, como o encontrado aqui no Vale dos Sinos, é só decoração para eles jogarem amarelinha na calçada? Ainda bem que a polícia, com todos os seus problemas e adversários, não desiste. Nem quando certas mentes iluminadas conseguem duvidar até do conhecimento desses profissionais que, no fundo, são os grandes responsáveis pela nesga de tranquilidade que ainda podemos experimentar. Porque se a barbárie não triunfa, é pelo idealismo de abnegados que enxugam gelo todos os dias ao nosso redor.


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