Quando o estado e a sociedade perdem o respeito

Quando o estado e a sociedade perdem o respeito

Oscar Bessi

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Se uma policial, mulher e mãe, sai de casa para cumprir uma ordem judicial, acaba alvejada na cabeça pelos disparos de um criminoso - e isto se torna um fato de pouca relevância para o mesmo sistema judicial que lhe deu a missão de neutralizar o crime que naquele local ocorria -, então eis um atestado de que estamos muito mal mesmo. Que vivemos dias sem rumo. Que a densidade das coisas se perde na frivolidade pastosa que tranca os dias nessas distâncias perigosas entre o real e o imaginário, o teórico rocambolesco e a crueza da vida prática. Pior: que episódios como aqueles onde vândalos e bárbaros simularam defecar, ou talvez até tenham defecado, num órgão supremo da justiça brasileira, não podem mais nem ser encarados como aberrações, tal o disparate do que se vê. O respeito é jogado fora assim, na pachorra do preguiçoso, ou do relaxado, que arremessa o copo descartável no meio da rua, pela janela do carro, e dá de ombros às consequências ao meio ambiente que também o atingirão, e a todos, sem dar ao menos a chance da reciclagem que poderia gerar dias menos fétidos ao seu redor. Pois tudo o que semeamos atinge a nós todos. Não há como escapar das consequências.

Se o estado, em sua gigantesca e complexa estrutura, é seu povo em essência e necessidades, o respeito por este povo deveria ser a premissa mais óbvia e básica de todas as relações e decisões daqueles que se investem de suas funções. Seja lá em que poder estiverem. Eis que, ao fim e ao cabo, é servir ao povo seu compromisso primeiro, visto que por ele são financiados. E não há povo, por mais diversa que sejam as culturas e as concepções, que queria outra forma de vida coletiva que não seja a que busca tranquilidade, possibilidades e esperanças. A regulação desse convívio coletivo entre tantos racionais inquietos nunca é simples, mas a essência sim: respeito. Pelo outro e pelo todo. Pelos princípios e por tudo o que já fizemos e ainda precisamos fazer, até mesmo desfazer. Para isso criamos normas. Por isso definimos limites. Para isso deixamos claro que pode e o que não pode, o aceitável e o ilegal. E não haverá interesse coletivo preservado, muito menos nem liberdade individual garantida, se o agente dessas garantias tão estudadas e estabelecidas não estiver muito bem protegido e respeitado pelo seu sistema, este que defende com o risco de sua própria vida para o bem de todos.

Quando uma policial, mulher e mãe, leva um tiro na cabeça no cumprimento do seu dever, oferecendo a própria vida (e a de sua família, por consequência) ao risco, e o bandido que a atinge tem sua conduta criminosa relevada em importância e gravidade, é porque vivemos dias nada bons. Se a vida de um policial vale tão pouco num ato de defesa da nossa sociedade, quanto valerá a de um operário? De uma professora? De um jornalista? Um estudante? Futuro assim dá medo. Hoje não se respeita um agente policial, daqui a pouco não se respeitará nenhuma outra autoridade estatal. E não serão só vândalos manifestantes numa loucura passageira. Há que se pensar muito nas consequências. Que sociedade queremos? Que amanhã? Qual o mundo que espera nossos filhos? Sim, há sempre a chance de se voltar um passo e recuperar, para o destino correto, tudo que pode ser reciclado. Antes que o caos nos carregue.


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