Livro "Jamais serei seu filho e você sempre será meu pai" encanta como exercício narrativo

Livro "Jamais serei seu filho e você sempre será meu pai" encanta como exercício narrativo

Romance de Thiago Souza de Souza traz a dor de uma ausência que, de tão sentida, está sempre presente

Henrique Massaro

Livro publicado pela Taverna é uma das grandes surpresas de 2021

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Em “Jamais serei seu filho e você sempre será meu pai”, romance de estreia do porto-alegrense Thiago Souza de Souza, publicado em 2021 pela editora Taverna, um filho precisa lidar com a perda de um pai de quem mal se recorda. Quando isso acontece, a dor por essa morte precoce fica condicionada ao luto dos outros membros da família e a ausência da figura paterna é tão sentida que parece estar sempre ali, ocupando um espaço, presente.

A morte do pai ocorreu por conta de um erro médico, uma injeção de dipirona feita durante uma cirurgia, mesmo após o alerta de que o paciente era alérgico à substância. O filho, que ainda era pequeno, constrói a imagem do pai, suas ações, escolhas de vida e o que o levou a precisar daquele procedimento a partir de comentários dos outros. Nunca há uma conversa direta sobre esses assuntos e detalhes sobre o fato só são conhecidos mais tarde, através do processo que a família moveu contra o hospital.

A maneira que o protagonista sem nome encontra para lidar com a ausência paterna ao longo da vida – e que o escritor, habilidosamente, utiliza para conduzir parte da narrativa – é escrevendo cartas para o pai morto. A primeira delas vem quando o personagem precisa encarar uma data difícil de ser nominada: um dia dos pais na escola. Mas a escrita continua, num processo íntimo e confuso que, em determinado momento, chega a se tornar uma forma de comunicação entre pai e filho. É através das cartas que o menino vivencia seu luto, relata seus dramas e tantas outras questões que, imagina, um filho deva contar ao pai.

Logo no início da história, sabemos que o objetivo do personagem já crescido é interromper essa escrita, colocar um ponto final nessa atividade compulsiva. Para isso, ele precisa escrever mais uma carta, a última de tantas que acompanhamos ao longo de todo o livro como um narrador independente que Thiago Souza de Souza cria para servir de força motriz da história. Mesmo que centrada num personagem e repleta de questões internas, a trama é envolvente pela forma como é arquitetada. Além das cartas, há duas outras vozes – uma delas talvez ainda mais inventiva que as demais –, num exercício narrativo original que coloca o romance e o autor entre as melhores surpresas literárias do ano em Porto Alegre.

Escrito entre 2014 e 2019, após oficinas literárias de Luiz Antonio de Assis Brasil e Daniel Galera, “Jamais serei seu filho e você sempre será meu pai” partiu de uma memória de infância, tão íntima e pessoal que até hoje mistura as esferas do real e do imaginado. Thiago nunca compartilhou a lembrança com ninguém, mas fez dela um romance de ficção. Porque, sim, trata-se de um livro de ficção no melhor sentido da palavra: resultado de um trabalho de criação, de tentativa e erro até encontrar a linguagem certa para se contar uma boa história e explorar questões de formas que só a boa literatura consegue.


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