Que nunca seja proibido sorrir

Que nunca seja proibido sorrir

Que 2022 seja ano da democracia

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      Tenho rido muito de mim mesmo. Esse mim mesmo é uma redundância que se consagrou. Não discuto com a necessidade de ser redundante. Terminarei o ano falando sério. Há coisas que nos deixam sem graça. Toda ditadura, de direita ou de esquerda, é uma excrescência. O capitalismo produziu seus regimes ditatoriais em pencas. Os Estados Unidos da América, terra, por excelência, do liberalismo econômico e da democracia representativa, apoiou e convive com ditaduras pelo mundo. Nos anos 1960 e 1970, na lógica da Guerra Fria, para combater o comunismo soviético, os norte-americanos sustentaram um ciclo de ditaduras militares de extrema direita na América Latina, que deixou um rastro de estragos, tortura, mortes e desparecidos. A entusiasmada aclamação ao violento e assassino regime de Augusto Pinochet, no Chile, durou até 1990. Atualmente os Estados Unidos se relacionam cordialmente com a ditadura da Arábia Saudita e com a China comunista.

      Essas relações são pautadas por interesses econômicos. Em muitas situações, porém, predominava a inclinação ideológica. O lema americano era: “Democracia em casa, ditadura, se necessário, na casa dos outros”. Há muitas ditaduras ainda por aí. A Coreia do Norte é possivelmente a mais escancarada. Um elemento característico das ditaduras é o que se pode chamar de conversão em dinastia, como os Castro, em Cuba. Na Coreia do Norte, o poder passou de Kim Il-sung a Kim Jong-il e deste a Kim Jong-un (pai, filho, neto). Ditaduras costumam rejeitar, embora algumas simulem eleições, pluripartidarismo e liberdade de voto em todos os escalões do poder. A ditadura comunista de Kim Jong-un deu agora mais uma mostra do que é capaz: proibiu o sorriso por onze dias. Mais do que isso, proibiu dar risada, atividades de lazer, beber álcool, demonstrar alegria e felicidade.

      Tudo isso em homenagem a Kim Jong-il, falecido há dez anos. A Coreia do Norte determina o que as pessoas podem comer, vestir, ouvir, falar e amar. O indivíduo não existe. Salvo o indivíduo ditador. É curioso ainda ver saudosos de Pinochet apontando o dedo para os defensores de Cuba, Venezuela e Nicarágua. Também é curioso ver entusiastas de Hugo Chávez e dos Castro insultando os pinochetistas. Ditadura é ditadura. Não importam as intenções. O que esperar de 2022? Que seja o ano do começo do fim de todas as ditaduras, abrindo, quem sabe, com a norte-coreana. Há quem pense que fazer agrados a algumas ditaduras de esquerda, consolidadas ou em construção, seria uma maneira legítima de ser solidário com quem se opõe aos horrores da extrema direita ou do próprio capitalismo. Há também quem veja no agrado a ditaduras de direita uma sinalização de recusa do comunismo.

De olho no futuro – Não existem só esses dois caminhos. Há um terceiro, melhor, complexo, difícil, necessário, o caminho da democracia. Dito com mais definição, o caminho da democracia social, que pode ser social-democracia ou não. Inglaterra, França, Alemanha e Suécia são democracias, são países capitalistas e, do ponto de vista da participação do Estado na economia e na vida diária das pessoas, são diferentes. Cada um que investigue e analise essas diferenças. Há pontos em que democracias se aproximam e não transigem: defesa dos direitos humanos, respeito à diversidade, liberdade de imprensa e de expressão e liberdade de culto. A Coreia do Norte, obviamente, não passa nesse tipo de teste. Um país que proíbe temporariamente o sorriso não pode ser levado a sério, exceto como a tragédia que é.

Ser contra o comunismo não pode significar ser a favor de ditaduras de direita. Ser contra o direitismo não pode levar a ser favorável a ditaduras de esquerda. O importante é ser democrata. Democracia não é a ausência de Estado. Mas o Estado constitucional a serviço da sociedade. Afinal, o Estado é a sociedade institucionalizada. Há quem veja um país como uma família cujos gastos devem ser administrados na base da receita e despesa. Especialistas alertam, contudo, que a comparação é simplória. Famílias não dispõem de Banco Central nem de precatórios. Recorrerei, por ser final de ano, quando se é mais complacente, a outra imagem simplificadora: um país é um condomínio. Cada um deve contribuir para o bem-estar do edifício.

      O vizinho mais rico ou mais forte não pode proibir o sorriso nem jogar lixo no corredor. Tudo precisa ser decidido coletivamente. O síndico, eleito pelos condôminos, não pode se intrometer no que ocorre dentro dos apartamentos de cada um, salvo naquilo que afeta a coletividade, como escutar música alta a noite toda. A imagem é tão singela que não precisa ser levada mais longe. A Coreia do Norte é um edifício no qual o síndico proíbe de sorrir no elevador, de usar minissaia e de falar da farofa da GKay. Um sofisma inventado para tentar salvar a cara de algumas ditaduras é dizer que elas não podem ser avaliadas pelos parâmetros da democracia ocidental. Que 2022 seja o ano da paixão pela democracia. Assim poderemos sorrir à vontade.


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