Um passeio em Palomas

Um passeio em Palomas

Retorno ao ponto de partida

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      Depois de quase dois anos, voltei a Palomas, onde minha irmã Vera constituiu o sítio Cabo Vito, em homenagem ao nosso patriarca já falecido. Sempre dou um pulo até a Florentina, outro distrito rural do município, onde passamos muitas férias de colégio, só para respirar o ar puríssimo daquele lugar maravilhoso da campanha gaúcha. O cheiro de mato me entrou pelo corpo como um bálsamo. Era um frasco inteiro do melhor perfume. Por que conto essas coisas tão pessoais? Por achar que um cronista deve dividir com seus leitores emoções e afetos universalizáveis, aqueles que cada um sente como únicos e essenciais.

      Outro ponto alto, literalmente, do ritual é a subida ao cerro de Palomas, meseta de trezentos metros de altura, símbolo da região, a 20 quilômetros da cidade. Eu ando com um desconforto na panturrilha esquerda. Mas subir até o alto do cerro me faz tanto bem que não senti coisa alguma. Só alegria. A vista lá de cima é linda. Para mim, a mais  bela que pode existir. Beleza afetiva. Quando morrer, que espero ainda demore muito, quero ser cremado e que parte das minhas cinzas seja jogada de lá para se espelhar por aqueles campos que jamais esqueço. Sonho com eles. Eu me vejo soltando pandorga lá de cima. Ou galopando a cavalo lá embaixo. Ou deitado à sombra de um cinamomo contemplando o céu muito azul de uma manhã de verão. É por isso que não tenho um sítio em qualquer outro lugar. Só as paisagens de Palomas e da Florentina, de onde também se vê o cerro, como se fosse maior, me fascinam. Sei que é uma dependência infantil. Que posso fazer? Nada.

      Meu primo Eleú, com quem saí de Livramento há 42 anos para correr mundo e buscar uma vida nova, está bem instalado em Palomas. Sempre que o vejo, lembro da mais bela canção de Belchior, “Tudo outra vez”, aquela que diz “gente da minha rua como eu andei distante”, e este trecho: “Ouvi dizer num papo/Da rapaziada/Que aquele amigo/Que embarcou comigo/Cheio de esperança e fé/Já se mandou/Oh! Oh! Oh!”. Fui eu, porém, que embarquei com ele num ônibus da Ouro e Prata, em 1º de janeiro de 1980. Ele não se mandou. Apenas voltou para casa. Isso não deixa de ser uma forma de se mandar. Só que não perdeu a fé nem a esperança. Deixou-se apenas levar pela força dos seus afetos.

      Em Palomas, ele fala assim: “Ali, na rua onde morava o soldado Nei”. Acontece que o soldado Nei morreu faz mais de 40 anos. Até a tal ruazinha já quase não existe. Mas sabemos o que ele quer dizer, localizamos cada ponto, funciona como um GPS do coração. E assim os sentimentos se renovam. Pisar aquele solo, sentir o frescor daqueles matos, olhar aquelas paisagens me fez pensar em algo que me escapava. Já em casa, entendi: era o desejo de agarrar o momento, de capturar o tempo e o espaço numa espécie de fotografia, impedir o presente de virar novamente passado. Fiquei ouvindo o meu cunhado Frutuoso, que nunca deixou Livramento, contar algumas histórias. Ele se aposentou da dura lide num supermercado e agora faz o que sempre amou: emprega as suas artes de gaúcho campereando por jornada. Que inveja me dá!


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