Perfis, dogmas e humor

Perfis, dogmas e humor

Tolstói em estado puro

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    Esse Tolstói levava jeito. Poderia ser até comentarista de futebol. Em “Guerra e paz” ele descreve oito pontos de vista de entendidos sobre como a Rússia deveria enfrentar Napoleão em 1812. Resumo os três mais divertidos: “O primeiro partido se compunha de Pfful e outros teóricos da existência de uma ciência da guerra, que repousa sobre leis imutáveis, tais como o movimento obliquo, o cerco do inimigo, etc”. Eram os neotáticos da época. “O segundo era diametralmente oposto, um extremo chamando sempre outro. As pessoas desse partido reclamavam desde Vilna a ofensiva na Polônia e o abandono de todo plano de antemão traçado. Representantes da audácia na ação, encarnavam além disso o espírito nacional e se mostravam em consequência mais intransigentes ainda que seus adversários”.
    Era o grupo do vamos que vamos. “O terceiro partido, o que inspirava mais confiança ao imperador, compreendia principalmente cortesãos [...] Essas pessoas preconizavam acomodações entre as duas tendências extremas. Pensavam e diziam o que dizem comumente os que não têm convicções, ao mesmo tempo que desejam tê-las”. Era a turma da conciliação pela ignorância. O príncipe André não acreditava em ciência da guerra. A questão era: “Haverá ciência possível numa matéria em que, como em toda coisa da vida prática, nada poderia ser previsto, ou tudo depende de circunstância inúmeras, cuja importância só se revela num único minuto que ninguém sabe quando soará?” André não acreditava em “gênio militar”. Eu não creio em gênio de treinador. Pfull era o defensor da teoria como medida de tudo.
    “Pfull era um desses teóricos tão aferrados à sua teoria que se esquecem de sua finalidade, isto é, a aplicação prática: por amor à teoria, desprezava qualquer prática. Regozijava-se mesmo com um desastre, porque um desastre, provindo de duma violação da teoria na sua aplicação, não lhe provava outra coisa senão a justeza de suas ideias”. Pfull era um invicto. Nunca perdia. Bastava ter paciência para esperar as ocasiões em que a realidade confirmaria as suas teses dogmáticas. Pretendia eliminar o incômodo do acaso e do imprevisto. André não sabia o seguinte: não importa se é verdade, o que conta é o efeito de modernidade. Como era uma guerra, porém, morriam pessoas. É por isso que não levo o futebol muito a sério: é só um jogo. Que bom!
    “Pfull era uma dessas criaturas que uma confiança desesperada em suas ideias pode levar até o martírio, e que só se encontram na Alemanha, porque somente os alemães baseiam sua segurança sobre uma ideia abstrata, a ciência, isto é, o pretenso conhecimento da verdade absoluta. O francês está seguro de si porque imagina que exerce, quer pelo seu espírito, quer pelo seu físico, uma sedução irresistível, tanto sobre os homens como sobre as mulheres. O inglês está seguro de si porque se crê o cidadão do Estado mais policiado do mundo: na qualidade de inglês sabe sempre o que deve fazer [...] O italiano está seguro de si porque sua natureza facilmente emotiva fá-lo esquecer-se de si mesmo e dos outros. O russo está seguro de si mesmo porque não sabe de nada e de nada quer saber e porque não crê que possa conhecer perfeitamente o que quer que seja”. E o brasileiro?

 


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