O homem que ama os manuscritos

O homem que ama os manuscritos

Entrevista com Pedro Corrêa do Lago

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Carioca, Pedro Corrêa do Lago, 63 anos, neto do gaúcho Osvaldo Aranha, presidiu a Biblioteca Nacional. Escritor e historiador, tornou-se conhecido como grande colecionador de manuscritos raros. Na semana passada, ele palestrou, a convite de Gilberto Schwartsmann e Alcides Stumpf, para a Associação dos Amigos da Biblioteca Pública do Rio Grande do Sul, à qual promete ceder peças para uma futura exposição.

Caderno de Sábado – O que o fez se tornar o maior colecionador privado de documentos do mundo?
Pedro Corrêa do Lago – Talvez duas palavras: paixão e loucura. Não se faz nada por cinquenta anos muita paixão. Loucura porque talvez a coisa tenha assumido lados obsessivos ou desequilibrados sob certos aspectos. Digamos que essa atividade me trouxe um gigantesco prazer. A gente é movido a prazer. São muitas alegrias e satisfações ao longo da minha vida.
CS – Ter manuscritos de Newton, Einstein, Mozart, Beethoven, Van Gogh, Picasso, Joyce, Proust, Henrique VIII, Gandhi, Chaplin, Disney e tantos outros é, antes de tudo, uma questão de prazer pessoal, de ordem psicológica, ou um investimento?
Lago – Como eu disse, tudo gira em torno do prazer. Essa busca só fez enriquecer a minha vida. O meu convívio com essas peças me trouxe conhecimento, satisfez a minha curiosidade e me trouxe muita felicidade. Não sei a quer ordem psicológica isso responde. Investimento nunca foi a minha preocupação. Talvez eu tenha até pago preços exagerados por algumas peças. Não que eu tivesse qualquer fortuna pessoal, mas, movido a paixão, a gente acaba fazendo algumas loucuras. Paixão, prazer e loucura são as palavras recorrentes nas minhas respostas. Tenho consciência, claro, de que, tendo gasto quase tudo que ganhei nessa coleção, ela é um patrimônio.
CS – Qual o seu documento preferido entre tantas relíquias da sua coleção?
Lago – Essa é a única resposta que não darei. Com cem mil documentos, fica muito difícil escolher um. Tenho momentos em que estou muito ligado a certas peças do Proust da minha coleção. Tenho tido a vida toda uma paixão pelo Proust, meu autor favorito. Em outros momentos são peças de grande significado histórico que me atraem. Varia muito. Segurar entre as mãos um documento que mudou a história ou que foi escrito por uma pessoa admirável, segurar o mesmo papel que alguém morto antes do nosso nascimento, tem um lado fetiche, talvez, mas tem também a emoção de estar com quinze minutos, meia hora, horas da vida de alguém congelado na mão. Quando seguro o manuscrito da Biblioteca de Babel, do Borges, vejo aquelas nove páginas e sei que Borges passou horas ali redigindo aquele texto, corrigindo, rasurando, aquilo que virou obra-prima da literatura do século. Agora está nas minhas mãos, um privilégio extraordinário. É como ser detentor de um quadro de um pintor importante. Tenho consciência desse privilégio.
CS – Qual é o procedimento para encontrar um manuscrito e adquiri-lo? Leilões? Qual a maior quantia que já pagou por um documento?
Lago – Hoje tem leilões no mundo inteiro. É tremendo. Tem um botão malévolo que diz dê o lance agora, aperta-se e depois tem que pagar. Comprei muito em leilão ao longo desses anos todos. Também comprei de especialistas que vendem na França, nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Alemanha, onde existem grandes marchands de autógrafos. Esta é a palavra técnica que define o que eu coleciono. Diz-se manuscrito ou documento porque as pessoas acham que autógrafo é sinônimo de assinatura. Não coleciona assinaturas, embora muitos documentos sejam assinados. Outros, não. O que me interessa é “auto grafos”, ou seja, escrito pela mão da pessoa. O meu importante é coisas que, muitas vezes, nem são assinadas, mas que têm um conteúdo muito importante. O conteúdo é que faz a importância do documento. A maior quantia que já paguei? Difícil dizer. Não gosto de falar em valores. Formei minha coleção com o dinheiro que ganhei com meu trabalho. Não herdei nada especial da minha família. Teve um documento importante pelo qual paguei em quatro anos talvez o equivalente a um pequeno apartamento.
CS – Entre os seus documentos há papéis de Joyce e Proust, que serão objeto de muita atenção midiática em 2022. Qual a sua apreciação da obra desses dois escritores?
Lago – Proust é disparado o escritor que mais me toca e influencia, cuja leitura, não diria que mudou a minha vida, mas a enriqueceu demais. A minha relação com Joyce é muito mais cerimoniosa. Entendo porque ele é considerado por muitos como um dos maiores escritores de língua inglesa do século XX, mas ele não me toca nem um milésimo do que me toca o Proust. Em 2022, centenário da morte do Proust e do Ulisses, estou emprestando peças para o Museu Carnavalet e para a Biblioteca Nacional da França para as exposições que eles vão fazer agora já no final do ano e no ano que vem.
CS – Que manuscritos tem de Machado de Assis?
Lago – Tenho um manuscrito de um conto de 47 páginas, que está, como outras peças citadas aqui, no meu livro A magia do manuscrito. O conto chama-se “O Escrivão Coimbra”. Acho que é a única peça de ficção importante do Machado que ainda esteja em mãos privadas. Os manuscritos mais importantes dele, maiores, estão na Academia Brasileira de Letras. Nem a Biblioteca Nacional têm manuscritos de ficção do Machado de Assis mais longo do que esse da minha coleção.
CS– O que a fotografia do século XIX, da qual é especialista, diz sobre o Brasil da época?
Lago – Diz muita coisa e serve como documento histórico. Ajuda a reescrever a história, mas sobretudo mostra que as desigualdades não vêm de hoje. Não há muitas fotos da crueldade da escravidão, mas há muitas fotos de escravizados profundamente melancólicos. Isso é uma coisa muito chocante quando se olha o conjunto das imagens do século XIX.
CS – Pode falar sobre a Coleção Pedro Corrêa do Lago de 16 mil documentos doada ao Memorial do Rio Grande do Sul?
Lago – Essa foi uma grande alegria minha. A Fundação Roberto Marinho e Memorial, na época, fizeram uma exposição linda com o Appelbaum, um dos maiores designers de exposições então. Fizeram uma sala do tesouro e painéis fabulosos para mostrar algumas das minhas peças mais importantes brasileiras. Eu tinha 39 anos de idade e foi uma grande emoção ver que aquela coleção que eu havia constituído recebia a honra de estar no Memorial. Depois soube que foi arquivada de maneira burocrática.
CS – Neto e biógrafo de Osvaldo Aranha, como vê o legado da era Vargas, da qual o seu avô foi personagem de primeiríssima linha?
Lago – A era Vargas obviamente teve problemas gravíssimos, o Estado Novo foi um período, sob muitos aspectos, lamentável, mas, comparado com outros, Getúlio aparece hoje com outra dimensão. A carreira do meu avô me deu a oportunidade fazer a sua fotobiografia. Ele merecia quem fosse lembrados grandes momentos da vida dele, que foram muito importantes para a história do Brasil.
CS – Em 2022 o Brasil festejará os cem anos da Semana da Arte Moderna. Como avaliar o legado desse evento na história brasileira?
Lago – Há muita discussão sobre quão decisiva foi a Semana. Talvez ela tenha em si uma importância muito mais simbólica do que propriamente prática em termo da introdução da arte moderna no Brasil. Mas é um belo momento e valer a pena celebrarmos com entusiasmo, junto com a Independência.

 


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