Reflexões sobre o 11 de setembro

Reflexões sobre o 11 de setembro

O dia que nunca termina

Juremir Machado da Silva

Aviões bateram nas Torres Gêmeas em 11 de Setembro de 2001

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Foi há 20 anos. Reconstruo um texto que escrevi em determinado momento. O 11 de setembro não aconteceu. Da mesma forma que o ano 2000 e o bug do milênio também não aconteceram. Apesar de previsões e de expectativas, todas vertiginosamente certeiras, o mundo permaneceu igual. Depois dos terríveis atentados ao WTC, a imprensa mundial declarou que o mundo nunca mais seria o mesmo. Errou. Apenas de uma maneira bastante superficial o mundo se alterou.  O filósofo Jean Baudrillard chegou a pensar que o 11 de setembro significava o fim da “greve dos acontecimentos”, realizando pelo negativo a retomada da História como movimento. A ironia eleva e reduz a mídia uma situação incontornável. Se, por um lado, ela quer tomar-se pelo acontecimento, por outro lado, está condenada a cobri-lo, ou a descobri-lo para existir.

O 11 de setembro visto aconteceu antes: no cinema de ficção científica (“Nova York sitiada”). O 11 de setembro não visto aconteceu depois, reconstruído pelo cinema para coincidir com as consequências projetadas pelo imaginário. O 11 de setembro realmente acontecido é grotesco demais, inconsequente (sem as consequências) de menos, fatual em excesso para ser enquadrado como notícia ou considerado como um evento histórico. A mídia precisou inseri-lo numa das suas séries. De alguma maneira, não muito distante do senso comum, somos positivistas e teleológicos: cada fato importante deve encerrar uma etapa do desenvolvimento social e inaugurar outra do zero.

O problema do 11 de setembro extrapola o horror e entranha-se no vazio das consequências rapidamente previstas e lentamente refutadas. O 11 de setembro de 2001, com a explosão das torres do WTC, é irmão gêmeo da queda do muro de Berlim. Ambos não aconteceram como visto e “previsto”. Nos dois casos, complementares e antagônicos, anunciou-se que o mundo nunca mais seria o mesmo. E ele não o foi. Mas não como foi dito. O 11 de novembro de 1989 foi apresentado como a porta redentora do futuro radioso de uma humanidade enfim libertada. O 11 de setembro de 2001 foi narrado como uma porta letal pela qual a humanidade entraria para sempre na era do medo e do terror sem alívio.

A questão, no sentido irônico das perguntas de Baudrillard, teria de ser: quando e como, de fato, o mundo muda? Talvez Baudrillard tenha dado a resposta: “Nem política nem economicamente a eliminação das torres põe em xeque o sistema mundial. É outra coisa que está em jogo: o eletrochoque da agressão, a insolência da sua execução e, por consequência, a perda de crédito, a falência da imagem. Pois o sistema só pode funcionar se consegue ser o equivalente da sua própria imagem, se pode refletir-se como as duas torres na sua condição de gêmeas, encontrar seu equivalente numa referência ideal. É isso que torna o sistema invulnerável — e é essa equivalência que foi quebrada. É nesse sentido que, mesmo sendo tão inapreensível quanto o terrorismo, ele foi, contudo, atingido no coração”. Com que consequências?

O coração da América foi atingido. Outros corações, porém, já haviam sido explodidos. E outros impérios humilhados. Nesse sentido, a história repete-se como tragédia, ao mesmo tempo, certamente, única e sempre a mesma.     Mais do que qualquer outro sistema, por sua própria “natureza”, a mídia funciona por excesso: a profusão do novo empurra o velho para a irrealidade do esquecimento. Se a ironia serve de saída de emergência para o analista, desde que praticada com audácia e originalidade, ou com o desprendimento de um homem-bomba, disposto a morrer pela sua causa, para a mídia só resta a possibilidade de voltar a “cobrir” para “descobrir”. Na atualidade, empurrada pelos ventos delirantes do pós-tudo, ela tenta tomar o lugar do historiador, ou do vidente, e limita-se a praticar o comentário como encobrimento. Não custa lembrar que cobrir, em jornalismo, significa “descobrir” ou “desencobrir”, desvelar, dar à luz, “fazer-vir”, revelar, fazer emergir.

O 11 de setembro de 2001 aconteceu como fato. Isso deveria ser suficiente para que se impusesse como acontecimento. Este, contudo, exige uma reconstrução imaginária complexa e derivada do trabalho conjunto dos diversos protagonistas em ação num momento histórico determinado. Como tudo o que se diz, sob o impulso de catalisadores simbólicos, só se encontra refutação ou confirmação em si mesmo. A cada aniversário do 11 de setembro a imprensa mundial confirma que o mundo nunca mais foi o mesmo. Assim, o que aconteceu como fato se torna acontecimento por ter sido narrado como tal e confirmado em seu estatuto, mesmo que fatos insistam em mostrar outras realidades e versões. Noutra leitura, marginal e chocante, o 11 de setembro de 2001 aparece como a simples confirmação de que o mundo continua o mesmo, “mais mesmo do que nunca”, um mundo em que, desde sempre, para usar a insuperável expressão de Hobbes, “o homem é o lobo do homem”. O retorno do talibã ao poder no Afeganistão, vinte anos depois, prova que o 11 de setembro não aconteceu.


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