Velho galeão

Velho galeão

Crônica sobre árvore da infância

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    No coração de muitas pessoas ergue-se uma árvore da infância. Talvez até na alma de todas as pessoas. Cada um tem a sua árvore. A minha foi aquele umbu frondoso, companheiro de tantas férias de verão. Assim deveria ser o nome dessa planta que refloresce a cada ano no mais íntimo da nostalgia: árvore da infância. Se lembramos de nossos bichinhos de estimação, não podemos tampouco esquecer das nossas árvores. Outro dia, andando na rua bem mascarado, pensei ter visto meu velho umbu de cinquenta anos atrás. Não era ele. Nem sequer era umbu. Aqueles galhos calejados, aquelas raízes generosas e saltando da terra, tudo me era tão familiar. Cheguei a balbuciar o seu nome.
    Meu umbu tinha nome e muitas formas. Às vezes, com sua casca espessa, era tartaruga, elefante, navio ou nave espacial. Outras vezes, era barco, casa ou caverna. Em me escondia em seu imenso oco.
– Cuidado, guri, pode ter cobra.
    Era minha avó com sua preocupação e sua voz de porcelana. Jamais conheci outra sombra tão fresca. Nunca ouvi dele uma queixa. Nem mesmo quando machuquei suas raízes com um martelo. Ele já estava lá quando cheguei. Procuro na minha memória esse dia do primeiro encontro. Não acho. Foi como se de repente estivéssemos abraçados. Desde sempre. – Atenção, guri, vai cair.
    Era meu avô com sua voz de bandoneon. Pensei ter visto meu umbu numa rua de interior que se esconde não longe da minha casa, onde dorme um gato na janela e cochila um simpático senhor, nesta cidade grande de altas árvores anônimas que certamente pertencem a crianças cujos nomes nunca saberei. Cheguei a abrir os braços para um abraço proibido nestes tempos de pandemia. Todo um pedaço da minha vista inundou os meus olhos fazendo escorrerem lembranças, que contive com o dorso da mão. Uma moça sorriu para mim como se quisesse me consolar:
– Vai encontrar o seu umbu.
    Ela tinha voz de recordações. Meu umbu erguia-se como um gigante para um céu que se fazia sempre azul. Salvo quando chovia subitamente e eu podia sentir um cheiro de terra molhada tão intenso que ainda me embriagava. Cheiro de pátio da casa de avô. Do alto do umbu eu via o mato distante e o outro lado dos campos que me incendiavam a imaginação com viagens, formas e sombras. Cada bosque, arvoredo ou floresta recebia o nome de uma cidade brasileira ou de um país. E assim vivia correndo mundo sem sair da sombra do meu umbu acolhedor.
    Soube que meu umbu morreu. Como morrem os umbus? No meu mundo encantado, que renasce quando ando por certas ruas desta cidade que já se faz minha, as árvores da infância nunca morrem. Dias desses, tenho certeza, encontrarei meu umbu na volta da esquina, não de uma esquina qualquer, certamente não de uma esquina de avenida, mas de uma dessas pacatas esquinas de ruas tranquilas, tão perto e tão longe, onde cochilam gatos, sonham idosos e umbus de infância esperam de galhos abertos. Há quem rechace as lembranças como algo trivial que todo mundo tem. Para mim essa é magia das recordações: todo mundo tem um umbu, que é igual, embora único, e que pode se chamar Velho Galeão.

 


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