Algumas (in)definições

Algumas (in)definições

Palavra por palavra

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Reconheço
que me desconheço
Face ao espelho.
*
E assim atravessamos a vida
Ora tristes como quem foge
Ora opacos como quem morre
Por vezes, loucos de porre.
*
Havia um anjo pintado na xícara
E uma asa quebrada sobre a mesa
De quem era: da taça ou do anjo?
*
Eu sou o centro da margem,
Nesga colorida no desvão,
A porta que fascina o abismo.
*
O que eu faço todo dia
Não interessa ao mundo
Apenas ao meu eu profundo,
Aquele que ainda desconheço.
*
Tenho a alma exposta em praça pública,
Condenada junto com os seus despojos,
O rosto transformado pelo tempo,
Esse feitor infame de escravos.
*
Tenho saudades do passado,
Aquele tempo que não passava,
Quando nunca pronunciava a palavra futuro.
*
Morre-se a cada dia de silêncio banal,
Lê-se a tristeza na capa do jornal:
Para onde vão os trens que morreram?
*
Em Palomas fui dono de um lote de nuvens,
Em Paris, das cores das cerejeiras em flor.
Nessas épocas, não sentia dor nas costas
Nem me angustiava com a palidez do arco-íris.
*
Cresci em vastos pátios amarelados
Ao Sul dos quais começava o infinito
Estrelas eram luzes com lugar certo
Trens apitavam antes da curva
Aves migravam sem se despedir
Heras subiam por ásperas paredes
Minha mãe me chamava ao entardecer:
“Entra, menino, que a noite te pega”.
*
Hoje comi peixe no Mercado Público
Cocei a barriga como um bronco,
Lambi os beiços e até comentei:
A poesia morreu. Está enterrada.
*
Estou farto do poeta descolado,
Do romancista laureado,
Dos doutos da Academia de Letras,
Dos jovens citados nas listas dos promissores
Dos queridinhos dos professores
Dos ganhadores do Jabuti
Dos polemistas fazedores de tretas,
Dos críticos rápidos no gatilho:
Foi moderno, não foi, foi, não foi!
*
A casa ronronava na maciez do escuro
Com essa doce alegria sem sapatos
Onde dormem os sonhos e os gatos
E morrem as lembranças do futuro.
*
Então, botei o pé na rua
Para sentir o sol na pele
E ver o corpo em movimento.
Quando dobrei a esquina,
Um anjo desdentado me disse:
“Fica em casa, lava as mãos”!

 


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