Fracasso ocidental no Afeganistão

Fracasso ocidental no Afeganistão

Talibã, relativismo e fanatismo

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    Cabul caiu. Faz pouco mais de uma semana. Parece tanto tempo. O ocidente fracassou mais uma vez. Certos conceitos entram em crise. Entre eles, o de relativismo. É possível ficar calado diante da cultura alheia quando ela se apresenta como barbárie? O talibã tem tanto mostrar que será moderado. Veremos. Outro conceito é do etnocentrismo. Grosseiramente falando, uma cultura julgar a outra pelos seus valores. É uma criação ocidental. O Ocidente já fez tanta barbaridade que se envergonha dos próprios valores. Não pode, porém, envergonhar-se de defender direitos humanos. Devemos praticar um relativismo máximo, mas não total, e uma interferência mínima. O antietnocentrismo também pode ser etnocêntrico: ainda eu dizendo o que o outro pode ser, seja, o que sempre foi, o que tem sido. E agora?
    Dá para ser relativista quando meninas correm o risco de só poderem estudar até os doze anos de idade? Conceitos confundem a gente. O ser humano tem sido especista e antropocêntrico. Coloca-se como espécie superior e julgar as demais conforme a sua hierarquia. O antiantropocentrismo ainda é um antropocentrismo: o home disposto a tratar as outras espécies de modo diferentes, concedendo-lhe até uma ética. Há quem diga que se trata de uma dedução lógica, não de escolha ou concessão. Ainda assim depende do humano. Até que a natureza tome providências. Em todo caso, a modéstia com princípio de intervenção muda tudo. Só não elimina paradoxos e contradições. Se o talibã for o que sempre foi, um regime de fanatismo, o Ocidente não poderá aceitar.
    Aí não se trata de diferença, mas de dominação e opressão. Existe algo acima da cultura: o ser humano. Outro conceito curioso é do anacronismo: julgar o passado com valores do presente. Quase sempre é uma astúcia para absolver o passado dos seus crimes. Quando uma só pessoa, numa época, compreende as infâmias cometidas, não há mais anacronismo no futuro. As demais também poderiam ter compreendido. Não há impossibilidade cognitiva. Papo muito cabeça? Emaranhado conceitual? Pensar não dói. Provoca. Interpretações diversas fazem parte do jogo. Como dizia Umberto Eco, no entanto, nem todas as interpretações são possíveis. Algumas são apenas falsas. O lugar da mulher no imaginário talibã aparece pela violência. Nada além disso.
    Os Estados Unidos ficaram vinte anos no Afeganistão e fracassaram. Joe Biden alega que nada pode fazer, pois nem os afegãos estariam dispostos a lutar. Para protegê-los, os americanos teriam de ficar lá para sempre. Fim de ocupação. A liberdade tem um preço. Um deles é a crise dos conceitos que organizam nossa percepção. Uma cultura com certos valores precisa se pautar pelo respeito às singularidades alheias. Até o dia em que certas coisas não lhe parecem singularidades, mas tão somente marcas de opressão. É uma leitura. Se não há parâmetro objetivo universal, existe aquilo que se toma por intolerável. Nenhuma cultura pode reivindicar o estupro e a tortura como traços culturais distintivo. Se o fizer, não poderá ser aceita no convívio com os outros. A queda do Afeganistão vai nos sacudir.

 


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