Nuvens de chumbo

Nuvens de chumbo

Crônica de agosto

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    Achava-se dono de uma tropa de nuvens sem calças. Contemplava o seu rebanho no céu sem temores. Sabia que o vento espalhava as suas nuvens e as reunia de novo. Eram nuvens que serviam para tudo. Ora eram animais, ora árvores, ora edifícios. Podiam ser moldadas para muitas coisas. Só ele podia decifrar todas as suas formas e utilidades. Divertia-se organizando esse território pendurado no alto. Não precisava de muitos outros brinquedos ou distrações. Os seus piores dias eram aqueles em que o céu amanhecia todo de concreto.
    Passava o tempo organizando as suas nuvens ou correndo com seu cachorro, a quem ensinava a língua do vento e o significado dos sons. Havia quem o considerasse estranho e recomendasse que fosse levado ao médico. O pai respondia: “Só tenho medo que fique com torcicolo”. Nunca tinham visto um médico. Soletrava a palavra torcicolo para o seu cusco, que fazia cara de desentendido ou olhava uma nuvem faceira. Um dia, um doutor advogado que apareceu por lá botou-lhe um apelido:
– Cronista.
    Ficou. Ninguém sabia o que fazia um cronista. Mesmo assim, pegou. O pai mesmo dizia aos vizinhos que estranhavam o jeito do guri:
– Não tem cara de cronista?
    Todos achavam que sim para não confessar ignorância, que era insulto, um dos piores, de acabar amizade. Se ele era cronista, que nome dar ao cachorro? Um que tivesse a ver com o lindo apelido:
– Astrolábio.
    Perfeito. Então foram para cidade grande, onde as nuvens se escondiam atrás de imensos prédios e já não podia repontá-las. Tudo era diferente. Esquisito. Viram-se diante de uma sorveteria imensa. Havia latas com sorvetes de todas as cores. Ele queria todos. Não tinha dinheiro. Um homem aproximou-se e fez uma estranha proposta:
– Um sorvete de três bolas pelo seu cachorro.
– Como?
– Te dou um sorvete de três bolas pelo teu cachorro.
– Pelo Astrolábio?
    O cachorro olhava as nuvens. O homem perguntou:
– Como você se chama?
– Cronista.
    O homem riu. Repetiu a proposta. O menino olhou as latas de sorvete. Salivou. Astrolábio também se interessou. Ignorava que podia se moeda de troca. Por que alguém podia querer um vira-latas amarelo?
– Não – respondeu o menino.
– Então fica sem sorvete.
– Posso lhe dar outra coisa, senhor.
– O que mesmo?
    O menino hesitou. Parecia escolher com cuidado para não cometer um engano. Por fim, depois de muito ponderar, respondeu suavemente:
– Posso lhe dar uma nuvem.
– Uma nuvem?
– Sim, aquelas ali são todas minhas.
    Eram nuvens descalças e de chumbo.

 

 


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