Amado pelo mundo

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Vinte anos da morte do grande Jorge

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    No jornalismo as chamadas datas redondas, cujo formato deve ser por causa de algum zero, servem para que possamos falar de quem gostamos. Vez ou outra, uma dessas datas escapa e ficamos a ver estrelas. Na semana passada, por exemplo, completaram-se 20 anos da morte de Jorge Amado (6 de agosto de 2001). Se Alphonsus de Guimaraens foi o poeta de julho, mês em que nasceu e morreu, Jorge Amado foi o prosador de agosto (nasceu em 10 de agosto de 1912). Brasileiro para rivalizar com ele em sucesso internacional só Paulo Coelho. Os donos do gosto não gostam deles. O mago por ser esotérico. Amado por ser apenas “um contador de histórias”. A literatura, porém, acima de tudo, serve para entreter as pessoas com boas histórias. Machado de Assis foi um grande contador de histórias. Não quis reinventar a linguagem.
    Num jantar em Paris, Dominique Fernandez, que se tornaria membro da Academia Francesa, autor de um belo livro chamado “Ouro dos trópicos, apaixonado por viagens e, em especial, pelo Brasil, disse:
– Amado é o maior escritor brasileiro de todos os tempos.
    Houve burburinho. Um dos convidados brasileiros contestou:
– É Machado de Assis.
    Uma professora de literatura também reagiu:
– E Guimarães Rosa?
    Fernandez não se intimidou. Afirmou que Amado era mais universal e que Rosa não havia tido coragem de manter o amor homoafetivo de Riobaldo e Diadorim até o final, escolhendo uma solução inverossímil.
    Grandes autores forjam personagens que se tornam mais reais do que os leitores. Capitu é a criatura mais importante de Machado de Assis. Diadorim é a obra-prima de Guimarães Rosa. Jorge Amado espalhou personagens que andam soltos por aí: Gabriela, Dona Flor, Tieta... a lista é vasta. Mas ele seria mais superficial, folhetinesco, novelesco. Gostos são gostos. Machado de Assis morria pela literatura de José de Alencar e de Gonçalves Dias. Passa vinho, passa queijo, passa licor, passa conversa interessante, alguém disparou a hipótese de costume sobre a recepção de Machado de Assis no estrangeiro:
– Machado foi prejudicado pelo pouco alcance da língua portuguesa no mundo.
– Como se explica que os russos tenham sido tão traduzidos na época? Como se explica o sucesso mundial de Jorge Amado?
    As duas perguntas foram feitas por um convidado até então silencioso. Aí todos olharam para mim. Queriam minha opinião. Não a neguei. Declarei meu amor por Machado de Assis e por Jorge Amado. De quebra, também distribuí elogios a Guimarães Rosa, que considero um grande contador de histórias, ainda que vez ou outra menos legível.
– Jorge Amado foi favorecido pela União Soviética, que disseminou a sua literatura por toda parte – sustentou o convidado das perguntas.
    Como eram bons aqueles jantares dos anos 1990. Cada um tinha uma boa tese para gastar durante as quatro horas em torno da mesa. Todos haviam lido Jorge Amado. Visitando o nordeste brasileiro, Dominique Fernandez conversou com pessoas que consideravam Jorge Amado um escritor menor, apesar do seu sucesso internacional e comercial: “Aqui, disse-me Antônio em Recife, não o consideramos como um barroco. Ele é demasiado natural, demasiado espontâneo para nos interessar. Não há buscas formais, inquietude linguística... Fala-me de Graciliano Ramos, de Clarice Lispector! Estes, sim, verdadeiros escritores...” Opinião bastante injusta”. E Fernandez segue enumerando as críticas dos intelectuais que encontrou ao escritor baiano: folclorizou o Brasil, passou uma imagem reducionista do país no exterior, escreveu excessivamente, foi “abundante” demais, otimista demais, comercial.
    Dominique Fernandez não ignorava os defeitos da fase do realismo socialista de Jorge Amado, mas tampouco negava as suas qualidades extraordinárias de narrador. Provocava: “Aqueles que, anoréxicos com a anemia do romance pós-flaubertiano, relutariam ainda diante das generosas, transbordantes, singuíneas, épicas e engraçadas sem-vergonhices dos livros de mais de quinhentas páginas, recomendamos, para terminar, uma novela de setenta e cinco páginas, traduzida em francês com o título de Les deux morts de Quinquin-la-Flotte, mas cujo nome em português é mais justo e mais belo: A morte e a morte de Quincas Berro d’Água (1961): não uma dupla morte, mas duas mortes”.
    A frase barroca tem sido usada por gênios, mas tem servido também para esconder a mediocridade de muitos. Alain Robbe-Grillet, chamado de “papa do Novo Romance”, com quem compartilhei muitos bons momentos, inclusive em Gramado, gostava de dizer que a frase límpida é mais difícil, embora também afirmasse que todos os estilos são bons quando funcionam, ou seja, quando encantam alguém. Melhor ainda é quando encantam muitos. O baiano Jorge é ainda é Amado pelo mundo. Ainda outro dia, na rua, pensei ter visto Gabriela. Era Dona Flor. Como foi que me enganei assim? Não si. Deve ter sido o novo visual.

 


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