Pai sempre presente

Pai sempre presente

Daquele que não esqueço

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    Eras gaudério sem usar bombacha. Na verdade, eras somente gaúcho, pois mesmo a palavra gaudério jamais te saía da boca. Todos esses termos que vicejam agora talvez te parecessem urbanos demais. Não dizias chimarrão, mas mate. Gostavas de um assado, não de um churrasco. Isso não quer dizer que tivesses qualquer preconceito quanto a nomes ou tradições. Nada disso. Era só o teu jeito, a tua cultura, a tua vida de peão, soldado (cabo) e domador traduzida em simplicidade. No truco, eras outro homem: gritavas, blefavas, soltavas ditos e tiradas. Depois, ao amanhecer, já eras o homem de sempre, nem alegre nem triste, sereno. Filho do teu tempo e dessa fronteira que conhecias como o teu pago, podias ser duro e gelado, porém no teu coração sempre ardia o sol.
    Acho que por muito tempo não te entendi por completo, especialmente na generosidade que te fazia repartir o pouco que tinhas. Posso te ver ao cair da tarde de verão lavando o corpo cansado numa sanga de águas cristalinas e peixinhos coloridos. Ouço o teu assobio na trilha que subia até a casa branca no alto da coxilha verde sob o anilado do céu. Eras pássaro e menino no entardecer dourado da campanha. Então ligavas o velho rádio ABC e buscavas nas ondas curtas uma emissora que falava metalicamente desde muito longe entre chiados e ruídos que ameaçavam explosões nunca acontecidas. Aí me pedias para coçar as tuas costas. Vez ou outra, dizias: “Escuta, escuta”. Posso te ver curvado sobre a enxada ou firme atrás do arado tangendo os bois: “Pitanga, Pitanga, boi, Guabiju...” Ou “Governo, Estado, boi, Governo”.
    Quando tropeavas te protegias do frio e da chuva com tua capa de brigadiano, que chamavas de capa reiuna, e só então usavas esporas e chapéu de barbicacho. Domar era a tua alegria sazonal, embora mais feliz te deixasse o lento trabalho de preparação do animal. Amavas os campos, os bichos e todas as coisas da natureza como dádivas de Deus, a quem agradecias com teu silêncio respeitoso ou com teus olhos contemplando o crepúsculo. Não dispensavas um copo de vinho tinto ou uma caña para aquecer a alma nos invernos chicoteados pelo minuano. Sabias também te divertir em tardes de carreiras de cancha reta. Um dia, tropeando ao teu lado, nos campos da tua infância, me disseste:
– Aqui eu fui muito feliz.
    Guardei essa declaração por saber que não tinhas o costume de te expandir. A palavra feliz era estranha nos teus lábios comedidos, não a felicidade. Falavas com os cachorros com a firmeza de um comandante e a cumplicidade de um amigo. Sorrias diante das frutas que amadureciam com a certeza de que a vida podia ser bela e nos servir o melhor de tudo. Lembro quando colheste um melão maduro numa manhã fresca e disseste:
– Sente o cheiro. Pode ter algo melhor?
Lições de vida – Amavas os teus sete filhos sem fazer distinções. Não esqueço quando te aposentaste do trabalho que tanto amavas e foste te empregar noutro mais duro para engordar os ganhos e garantir boas condições de vida e estudo para todos. Quando apareci com um bodoque para matar passarinhos, colocaste a mão na minha cabeça e ensinaste:
– Passarinho é para ver. Tão bonito.
    Foste alambrador, peão de estância, caseiro, domador, brigadiano, esquilador, carpinteiro, pedreiro, empregado de frigorífico, cuidador de cavalos para carreira, agricultor, quanto coisa que nem lembro mais. Estavas sempre pronto para ajudar um vizinho. Às vezes, ralhavas comigo quando precisavas da minha ajuda e eu ficava lendo deitado sobre um pelego dentro da velha carreta postada à sombra dos cinamomos:
– Esse guri não larga os livros. Guri preguiçoso!
    Quando, porém, chegava uma visita, dizias orgulhoso:
– Estudando. Vai ser doutor.
    Esse orgulho tinhas de cada filho, aos quais transmitias tuas lições de vida sem dizer que eram valores. Apenas falava de honestidade, trabalho, amor e lealdade. Posso te ver, nariz aquilino, cabelo esbranquiçado, contando causos à beira do fogo. Gostava de histórias de lobisomens, de fantasmas que acordavam acorrentados, de homens valentes combatendo nas cordilheiras de Palomas, de gineteadas, esquilas e carreiradas: “Cem no zaino, cem, cem...”. Queria ter a tua coragem e habilidade. Levantavas às três e meia da manhã para sair cedo em busca de carona para as chácaras que sempre alguém te emprestava. A vida na cidade era para ti um curral. Precisas da liberdade do pampa.
    Penso em ti sempre que chove mansinho ou que o sol se recolhe deixando um rastro avermelhado num canto do céu. Sei que gostavas dessas cores e vias nessas pinceladas naturais um quadro pintado por Deus. Penso em ti também quando irrompe uma súbita chuva de verão e um cheiro de terra molhada me invade as narinas até me impregnar a alma de saudades. Recordo que dizias, já na cidade, com fagulhas nos olhos:
– Cheiro de pátio na campanha.
    O tempo passa. Continuas a fazer muita falta.

 


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