Homem digital em transe

Homem digital em transe

Metamorfoses do infinito

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    Tenho uma edição francesa de “O homem digital”, de Nicholas Negroponte, autografada pelo autor. O encontro aconteceu em 10 de agosto de 1995. Eu tinha meu exemplar de “L’homme numérique” fresquinho. Negroponte, então profeta das novas tecnologias, veio a Porto Alegre. Eu havia acabado de retornar de Paris, onde fizera doutorado em sociologia, e estava cheio de gás para fazer perguntas. Como o tempo passou! Pulei de joviais 33 anos de idade para maduros 59. Tudo era tão novo na época que o livro abria com um glossário para definir termos que confundiam as cabeças como bit, CD-ROM, hipertexto, interface, internet, modem, multimídia, digital, realidade virtual, rede, servidor e WWWW. Lembro que alguns gaguejavam essas palavras.
    O tempo do CD-ROM já passou. Quem se lembra dos disquetes? Negroponte deliciava-se prevendo um futuro que para ele já estava presente. Assinalei algumas passagens: “As máquinas terão uma compreensão tão sutil (ou mais) que os seres humanos de nossa personalidade, de nossas particularidades (como o fato de usar uma camisa azul listrada) e dos acontecimentos, bons e maus, que pontuam nossa vida”. Executivos de camisa azul listrada riram. Havia deslumbramento no ar. Negroponte vibrava: “O verdadeiro valor de uma rede reside menos na informação que transporta do que na comunidade que forma”. Aplausos. O que ele estaria querendo dizer mesmo? Como seria?
    Ele desandou a falar em objetos inteligentes, geladeiras que fariam contato com o supermercado quando faltasse presunto e casas prontas para antecipar os desejos dos donos. Alguns olhares expressaram dúvidas. Eu mesmo perguntaria se isso seria acessível a todos. O guru subiu um degrau para dizer que nenhuma tecnologia seria tão democrática. Falamos sobre educação. Ele mesmo abriu meu livro na passagem que sublinhei: “Muitas crianças pretensamente com dificuldades de aprendizagem vão desabrochar no ambiente construtivista”. Digital. Saí de lá pensando: estará certo? Quanto de acerto e de erro? Vizinho em Boston de meu amigo Federico Casalegno, que visitei depois, Negroponte provocava desconfiança com seu ar de vendedor de novidades.
    Passados 26 anos, folheio o livro, olhos as passagens destacadas e constato: ele acertou tudo. Ou quase. Digo quase para valorizar a modéstia. Um dos momentos mais mobilizadores foi quando falou de carros inteligentes. Tudo seria inteligente. Era tanto inteligência que dava medo de não estar à altura. Ele previa sistemas com humor, sistemas que puxariam a orelha das pessoas e que nos disciplinariam com uma babá germânica. Mais precisamente, bávara. Federico está agora em São Francisco. Negroponte continua antecipando futuros por aí. Já sabemos, por ele e por outros, que os livros lidos em tablets podem nos ler e repassar informações para editores, que podem remetê-las a autores. Há programas que podem estimar quanto tempo ainda temos de vida. Os bancos também fazem isso quando nos oferecem alguns produtos. Prefiro não saber. Nostálgico, acredito ainda ter muito pretérito pela frente. No mundo digital, o Congresso Nacional poderá aprovar uma reforma eleitoral com um enorme passado. Se colar, passa a boiada inteira.

 


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