Mentiras, posturas e narrativas

Mentiras, posturas e narrativas

Declarações para brasileiro ouvir

publicidade

    Não peço que as verdades usem gravata, farda ou tailleur. Tampouco exijo que a prosa ande sempre separada da poesia. Acho que tudo pode acontecer. Salvo engano. O que me parece mais difícil de aceitar é que a mentira se pavoneie em praça pública. É verdade que vivemos um tempo de relativismo – tem gente dizendo que tudo depende de ponto de vista, o que fortalece a cegueira dos terraplanistas – e isso dá à mentira certa desenvoltura, digamos, epistemológica. Sou do tempo em que prova era prova, indício era indício e boato era boato, sempre mais apreciado pela leveza e descompromisso com provas. Esse tempo de que falo é antigo, da época em que certo grego perguntava: o que prova que uma prova é uma boa prova? Era preciso provar a prova.
    Depois, dada a dificuldade e o tempo que se perdia, convencionou-se que, dependendo do caso, indício passaria a ter valor de prova. Essa decisão levou a grandes viradas. Borba Gato, que anda muito falado, ficou quase vinte anos foragido sob acusação de ter matado um fidalgo (se fosse um comum o outro seria o tratamento). Perdoado, terminou a vida como juiz. Viveu 69 anos agitados. Não foi um grande caçador de índios por ter sido bandeirante no ciclo dos metais preciosos, quando os interesses eram outros. Mesmo assim, integrou a categoria dos predadores escravistas, que seriam vistos como heróis pelos beneficiados por suas ações, antes de o jogo virar novamente e as estátuas entrarem em pânico. Enquanto houver presente, o passado sofrerá alterações. O historiador é um jornalista que cobre o passado: sabe que os fatos não são diamantes em estado bruto.
    Como ia dizendo, não peço que a mentira seja banida do universo por uma questão ética: não quero praticar especismo propondo a extinção do ser humano. No entanto, concordo com quem pede aos mentirosos certa compostura. A mentira requer certa discrição. Se digo que tenho a verdade, dou a esta um crédito suplementar. Logo, se não entrego o prometido, faço um pacto com a contradição, o que atrapalha a argumentação dos aliados, obrigados a fazer malabarismos compensatórios. Já me pediram uma definição de mentira, dado que a verdade seria relativa. Fiquei com isto: aquilo que evidências negam.
    A minha definição não convenceu. Quiseram saber o que eu entendo por evidências. Quase sempre que se faz esse tipo de pergunta a mentira começa a rir. Enfim, não defendo que a verdade ande nua. Afinal, com esse frio ela poderia morrer congelada, deixando a mentira sem contraponto, o que talvez lhe tirasse a alegria de existir. Há quem jure que a mentira pode ser apenas a suspensão do juízo pelo tempo necessário para atingir alguma meta. Depois, a verdade seria restabelecida. Logo, não haveria razão para tanto drama. Na época em que o mentiroso ficava vermelho ao fazer uma das suas tudo era mais fácil. O rubor era indício de moralidade. Provava que o mentiroso reconhecia a verdade. Isso ainda era a realidade. Na hiper-realidade a mentira é tão evidente que se torna verdadeira por acordo quanto a uma inutilidade da verdade. Essa é a base das narrativas mitológicas.

 


Mais Lidas

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895