Ilusões perdidas

Ilusões perdidas

Tempo de chamas

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    Era no tempo da ditadura.
    Lia “A educação sentimental, “O vermelho e o negro” e “Ilusões perdidas”. Via-se alternadamente como Frédéric Moreau, Julien Sorel e Lucien de Rubempré. Era o jovem pobre que sonhava com glória, riqueza e amores. Só tinha a literatura como amparo. Comparava Flaubert, Stendhal e Balzac como se cotejasse espigas de milho. Sabia que um dia enfrentaria os seus fantasmas. O fascismo banalizava-se no cotidiano com suas paradas militares, marchas de estudantes, slogans patrióticos, aulas de moral e cívica e cancelamentos de opositores.
    Recordava-se do que ainda viveria. Lembrava-se com exatidão de tudo que não havia acontecido. Pressentia que dos três títulos que o acompanhavam o mais certeiro era o último. Educava-se sentimentalmente pelo vermelho e o negro para saber no momento certo perder as ilusões. Ignorava que essa era a primeira ilusão a perder. Descobria no dia a dia as mazelas do regime. Jovens que sofriam, pais de família que não voltavam, professores que atravessavam a fronteira e nunca mais apareciam. Aprenderia sozinho a conceituar fascismo: a impossibilidade da diferença. Os personagens que amava faziam longas travessias de desertos. Treinava as suas narrativas em cadernos de espiral enquanto a sua cabeça rodava em sonhos estranhos que pareciam alucinações.
    Relia os seus romances prediletos até as folhas dos livros caírem. Quando se sentia forte, recitava Flaubert: “Quero escrever a história moral dos homens de minha geração – ou, mais precisamente, a história de seus sentimentos”. Quando hesitava, citava Stendhal em voz alta para as ovelhas: “Já vivi o suficiente para ver que a diferença provoca o ódio”. A sua ilusão era pensar que o artista precede a vivência. Quando se desconsolava, lia Balzac para os cavalos: “A consciência, meu caro, é uma dessas bengalas que cada um pega para bater no vizinho, e da qual jamais se serve para si mesmo”. Não compreendia ainda a profundidade dessa afirmação, mas sentia que os animais a aprovavam. Em todo caso, as pessoas não queriam ouvi-la.
    Era um estranho no seu mundo com esses livros que falavam de coisas distantes. Ele sentia que não era verdade. Preferia a sutileza da prosa de Flaubert. Admirava as reviravoltas das narrativas de Stendhal. Percebia que Balzac exprimia a crueza mais verdadeira. Então, para descansar, pintava com palavras tudo que via, especialmente a paisagem. E assim as tardes caíam como pandorgas colorindo o verde já esmaecido dos campos. Tudo se convertia em fogos de artifício congelados no céu, cartões postais em tons vermelhos pintados com a mão de Deus, fagulhas de poemas apenas sussurrados.
    Então passou o tempo e toda poesia foi cancelada, suspeita de subversão. Sobrou Flaubert: “A sra. Moreau nutria uma alta ambição para o filho. Não gostava de ouvir criticarem o governo, por uma espécie de prudência antecipada. Primeiro, ele precisaria de proteções; depois, graças a seus talentos, se tornaria conselheiro de Estado, embaixador, ministro. Seus triunfos no colégio de Sens legitimavam esse orgulho; ele conquistara o prêmio de honra”. A imagem de um agricultor com sua arma marcará um tempo de ilusões perdidas. Também perderam as ilusões os que esperavam as provas de Bolsonaro de fraudes nas urnas eletrônicas. Era só desconfiança e jogo de cena. A cultura queima, do Museu Nacional à Cinemateca. Ardemos.

 


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