Fatos e narrativas

Fatos e narrativas

Quando a versão vence o real

publicidade

      Certas pessoas ficam marcadas pelo que aparentam mais fortemente. A narrativa vence a nuança. Gilberto Freyre, em “Casa Grande & Senzala”, escreveu: “Na realidade, nem o branco nem o negro agiram por si, muito menos como raça, ou sob a ação preponderante do clima, nas reações de sexo e de classe que se desenvolveram entre senhores e escravos no Brasil. Exprimiu-se nessas relações o espírito do sistema econômico que nos dividiu, como um deus poderoso, em senhores e escravos. Dele se deriva toda a exagerada tendência para o sadismo característica do brasileiro, nascido e criado em casa-grande, principalmente em engenho”. O conservadorismo de Freyre e sua simpatia pelo regime de 1964 engoliram qualquer modulação daquilo que disse.

      Pero Vaz de Caminha elogiou as águas de nossa terra: “Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém, a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados, como os de Entre Doiro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá. As águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem”. Vai faltar. O homem está mexendo tanto no meio ambiente que tudo de desequilibra e falha.

      Freyre tinha ideias curiosas: “Considerada de modo geral, a formação brasileira tem sido, na verdade, como já salientamos às primeiras páginas deste ensaio, um processo de equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A cultura europeia e a indígena. A europeia e a africana. A africana e a indígena. A economia agraria e a pastoril. A agrária e a mineira. O católico e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietário e o pária. O bacharel e o analfabeto. Mas predominando sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo”. Nesse “equilíbrio” uma parte sempre levava a melhor. A gangorra sempre pendia para o mesmo lado.

      Passados trinta anos da fundação de sua obra-prima, Oscar Niemayer disse: “Brasília é uma cidade moderna, uma cidade bem concebida por Lucio Costa, com quem trabalhei, mas não foi infelizmente a cidade do futuro. Pena, pois quando penso no futuro, penso numa cidade cujas bases são (e não digo seriam) as de uma sociedade justa na qual os homens seriam iguais”. Como se amarram esses fios? Como se aparam essas arestas? Como se articulam esses pensamentos? Talvez com ajuda deste diálogo do anedotário antigo:

– Onde fica o Brasil?

– Num lugar que não existe.

– É bom lá?

– Um paraíso.

– É pra lá que eu vou.


Mais Lidas

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895