Poesia e prosa em lançamentos

Poesia e prosa em lançamentos

Da poesia Dante ao jornalismo de Samuel Wainer

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      Há sempre muito o que ler. Ainda bem. À noite, para adoçar estes tempos amargos, vi uma série açucarada: “Doces magnólias”. Recomendo. De dia, para embelezar minhas tardes, li “Divina rima, um diálogo com a Divina Comédia de Dante Alighieri”, de Gilberto Schwartsmann, com ilustrações de Zoravia Bettiol. (Sulina). Li também, pelo prazer de me embrenhar na história, “Samuel Wainer, o homem que estava lá” (Cia das Letras), biografia escrita pela jornalista Karla Monteiro. As páginas passam, as horas somem, a vida segue e os males se atenuam. Beleza.

      Alcides Stumpf tem razão: a “Divina rima” de Gilberto Schwartsmann é a “divina ousadia”. Em tercetos, como Dante, o escritor gaúcho entra em sintonia com as musas. Luxo só. A largada já diz tudo. Tem prefácio de Antonio Carlos Secchin, da Academia Brasileira de Letras, que se derrama: “O autor encarou e venceu um arriscado desafio literário: falar de uma obra valendo-se, ao longo de todo o texto, de um dos seus mais célebres recursos poéticos, qual seja, o da terza rima: a utilização sistemática de tercetos em que o verso 1 rima com o 3 e o verso 2 com o 1 do terceto seguinte”. Missão cumprida. Eis:

É difícil imaginar que haja algum leitor

Que ao ler a Divina Comédia não tenha curiosidade

De entender as motivações que levaram este autor

 

A brincar de terza rima de Dante! A bem da verdade,

Juro que Zoravia é inocente, surgiu em mim a vontade

De imitar o poeta – sem ter a mesma capacidade.

Assim começa. O resultado é um passeio pelo inferno, pelo purgatório e pelo paraíso de Dante tendo Gilberto como guia. Se alguém não conhece Gilberto Schwartsmann, o que me parece difícil, aqui vão algumas pistas: oncologista de renome internacional, professor aposentado da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, autor de “Frederico e outras histórias de afeto” (Libreto), “Meus olhos”, “Acta diurna” e “Max e os demônios”, todos pela Sulina. Médico escritor. Essa é uma tradição bem-sucedida. 

Gilberto Schwartsmann entrou em literatura para ficar. Conta histórias divertidas e cheias de reviravoltas. Tem alma de poeta. Encontra na cultura o alimento que faz da vida algo superior. Destaco do seu passeio com Dante este delicioso e envolvente terceto:

O purgatório é esta gleba de areia em forma de chapéu!

Jerusalém por cima! E o monte no extremo contrário!

Fica assim mais fácil compreender o caminho do céu!

Samuel Wainer – O criador do jornal “Última Hora” foi do nada ao tudo com ajuda do seu talento e de Getúlio Vargas. A biografia de Karla Monteiro, em quase seiscentas páginas, mostra em minúcias a sua ascensão e queda. Biografia jornalística é um gênero com muitas anedotas, algumas que se repetem de livro em livro, e um tipo de frase: “Debruçado na janela, Samuel acendeu um cigarro e se dedicou a ouvir os estampidos que, pela distância, não dava para distinguir se eram tiros ou foguetes”. Samuel mudou a imprensa brasileira. Como ele mesmo confessou, vendia a alma por anúncio. Não escrevia tão bem quanto outros, mas tinha faro para a notícia e sabia tecer relações.

      O leitor mais jovem se surpreenderá ao ver Samuel e Carlos Lacerda juntos na revista “Diretrizes”. Na época, Lacerda era marxista; Samuel, antigetulista. O tempo faria de Lacerda o algoz de Getúlio e o guru da direita; Samuel criaria o jornal que seria a voz solitária do trabalhismo na grande imprensa, defendendo Getúlio e Jango. Eram tempos muitos diferentes. Basta refletir sobre estas linhas de Karla Monteiro a respeito de Rubem Braga: “O cronista se posicionara publicamente contra o voto feminino, o que tirava Bluma do sério. Segundo sua tese, a mulher era ‘muito mais cretina do que o homem’, portanto ‘um enorme eleitorado reacionário, conservador e idiota’”. Que feio! Bluma era a mulher de Samuel. Não achava graça nesse machismo pretensamente bem-humorado. Queria mudar o mundo.

      Um bom começo era mudar Samuel e seus amigos. O mundo mudou. Samuel também. O menino judeu, nascido na Bessarábia, viveria altos e baixos e viraria príncipe do jornalismo brasileiro até ser abatido pela ditadura militar de 1964. Terminaria os seus gloriosos dias como destacado colunista do jornal Folha de São Paulo quando a ditadura estava quase morta, mas ainda mantinha o ditador de plantão. Contra Samuel, no último governo de Getúlio, a direita bancou a CPI da Última Hora. Os jornais obtinham dinheiro barato do Banco do Brasil, mas o financiamento da UH podia ser o caminho para depor Vargas. Além disso, Samuel havia nascido no estrangeiro. Não podia ser dono de jornal.

      No jornalismo, cair, levantar e cair podem ser exercícios corriqueiros. Karla Monteiro conta: “Um ano depois da falência, em abril de 1972, uma pequena fresta se abriu para aquele que já fora dono de um império. Caindo na lábia de João Pinheiro Neto, Adolfo Bloch resolveu lhe dar uma chance, chamando-o para capitanear o seminário Domingo Ilustrado, reedição da velha Flan. A nenhum dos contratados pesava em branco: Samuel detestava Adolfo Bloch e Adolfo Bloch detestava Samuel. Mas fazer o quê?” Era preciso ocupar a trincheira. Samuel Wainer existiu pelo jornalismo. Nele, foi gigante.


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