A estranha democracia de Altas Pedras

A estranha democracia de Altas Pedras

Relatos de um lugar que não existe

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      Como todos sabem, Altas Pedras separou-se de Palomas depois de um estremecimento das placas tectônicas provocado pelo rebaixamento simultâneo dos dois grandes clubes locais. Desde então coisas estranhas passaram a acontecer por lá, onde uma parte da população ficou cega e acusa a outra de não ver um palmo à frente do nariz. Altas Pedras adotou uma lei orgânica que funciona como uma verdadeira constituição na medida em que o território vaga à deriva soprado pelo Minuano. Há quem diga que foi uma praga de um comunista português.

      Pela nova Carta Magna de Altas Pedras o mandatário será destituído se mentir três vezes em público. Os extremistas defendiam que uma vez bastava. Os conciliadores defenderam a proposta de três vezes e venceram por um voto de diferença. Também se aprovou que se o chefe disser palavrões três vezes em público será retirado do cargo. Se for acusado de malfeitos três vezes sem apresentar explicações também perderá o posto. Os críticos dessas propostas alegam que se trata de moralismo exacerbado, de vingança política e hipocrisia. O principal argumento, porém, é outro: não poderia ser tudo três. Que fixação é essa no número três? O três não pode estar sempre certo, afirmam. Outra corrente argumenta o seguinte: quem já não mentiu três vezes? Quem já não foi acusado três vezes de malfeitos? Quem já não falou palavrões três vezes em público? Para mostrar que não é radical essa facção aceita negociar. Considera razoável punir depois de 1460 vezes. Ou de três vezes por dia durante quatro anos consecutivos.

      Altas Pedras também definiu o seguinte: tudo que não pode ser visto e apalpado é falso. Nessa categoria, por lógica, entram os vírus e o voto eletrônico. Exige-se internet impressa. Contra vírus se receita chá de carqueja. Se a carqueja serve para fazer vassouras que limpam toda sujeira, por que não serviria para liquidar um vírus? Outra medida sanitária adotada por lá: CPIs só poderão acontecer com autorização do chefe do executivo, especialmente se for para investigá-lo. Assim se evitam, sustentam os que bancaram a proposta, fofocas e desrespeito à maior figura local. Democracia, alegam, é fundamental se não atrapalhar a ordem, a economia e os bons costumes.

      Havia um projeto de fechar a suprema corte local, o tribunal de contas e a procuradoria-geral para diminuir custos. Mas isso impediria a indicação de alguns aliados para cargos tão cobiçados. Adiou-se a votação de tão democrática ideia por justas razões pragmáticas. O guru do comandante local se trata pelo SOS, o SUS de Altas Pedras, mas, quando necessita desses serviços normalmente criticados por seus seguidores, viaja de primeira classe para ser atendido. Faz sentido. É preciso chegar na frente. O chefe do parlamento local tem o poder de abrir ou não os procedimentos para afastar o presidente. Quando questionado sobre o fato de estar sentado em cima de cem pedidos, sem examinar qualquer um deles, explica sem hesitação sua lógica:

– Vai abrir algum procedimento?

– Não.

– Por que não?

– Porque não quero.

      Altas Pedras é um lugar tão singular que a expressão mais usada por seus habitantes já virou um bordão extremamente popular:

– Altas Pedras não existe mesmo!


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