Tempo de partidas

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Morreram José Ernani e o Dr. Barata

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      Cada lugar tem seus personagens fundamentais, aqueles que semeiam pelo gosto de ver os campos verdejarem. José Ernani de Almeida era o nosso homem em Passo Fundo. Gosto dessa expressão, tomada de empréstimo ao grande Graham Greene, autor de o “Nosso homem em Havana”, um dos maiores narradores do século XX. Quando falo narrador, quero dizer aquele que encadeia os acontecimentos com maestria. Ernani foi radialista, professor de cursinho, historiador, secretário da cultura, agitador cultural, amigo dos amigos e das artes, gente boa. Dei muitas palestras em Passo Fundo organizadas por ele. Era uma alegria encontrá-lo, sempre afetuoso, sorridente, generoso, afável.

      Ernani amava a Música Popular Brasileira (MPBP), da qual era grande conhecedor. Ia de Chico Buarque a Noel Rosa com desenvoltura. Vinha de Passo Fundo a Porto Alegre para ver os grandes shows. Quantas vezes tive a felicidade de encontrá-lo nesses espetáculos da vida. Neste meio de vaidades gigantescas, de humores instáveis e que azedam com a passagem dos anos e com a chegada dos fracassos sem volta, Ernani era serenidade, modéstia e satisfação. Todo e-mail que me enviava carregava uma boa dose de afeto e de cordialidade. Jamais uma indelicadeza ou um desses elogios que funcionam melhor como crítica.

      Muito conversamos sobre Belchior na época em que o cantor andava pelo mundo e me procurou em Porto Alegre. Ernani podia recitar as canções do músico sem qualquer esforço. Tinha antenas especiais para a poesia. Quando ficou doente, falou disso imediatamente aos amigos. Recebi dele uma mensagem contando que um câncer o ameaçava. Estava pronto para lutar e lutou. Não convivi com Ernani no dia a dia, mas a lembrança que guardo dos nossos encontros esporádicos é a de um homem apaixonado pela vida. Tinha as suas causas, entre elas a dos animais. Sei que os seus alunos o adoravam. Pude ouvir de alguns, antes das palestras que fiz, sobre a admiração que sentiam pelo mestre. Ernani ensinava conteúdos, mas também tolerância, respeito à diversidade e amor à ciência. O nosso homem em Passo Fundo misturava razão e emoção.

       Quando um espírito assim se cala, a rede na qual nos inserimos por afinidades eletivas oferecidas pela existência perde um elo e fica mutilada. Um dia, como a vida segue implacavelmente, alguém recebe o bastão e dá continuidade à tarefa. De que se trata? De espalhar cultura, de louvar as artes e de usar tudo isso para consolidar afetos e ter boas conversas antes e depois dos atos oficiais. Passo Fundo guardará luto por Ernani durante um bom tempo. Juliano, Alex, Tau, alguns dos seus amigos com quem sempre dividimos mesas depois dos nossos saraus, saberão lembrar desse homem culto e simples que repartia abraços nos tempos em que tocar era dizer “gosto de ti”.

      Gosto dessas relações que se tecem a distância, alimentadas por raros encontros, e ainda assim se consolidam. Ficam como pontos de luz na escuridão dos anos. Há o tempo de fazer amizades e o tempo de contar amigos perdidos. O nosso homem em Passo Fundo virou estrela.
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Durante alguns anos, na TV Guaíba, sob o comando de Flávio Alcaraz Gomes, participei do Guilheiros da Notícia. Havia gente de todos os horizontes políticos. Um deles era o Dr. Barata. Médico, humanista, culto, dizia o que pensava e pensava o que dizia, Faleceu nesta segunda-feira, em Porto Alegre. Dos velhos guerrilheiros já se foram Flávio, JK, Matias, Baldi e agora o Dr. Barata. Saudades daqueles tempos politicamente incorretos.


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