Conto: a inglesa

Conto: a inglesa

Uma revelação tardia

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      Na manhã em que a inglesa se jogou pela janela eu não entendi o que acontecera. Muitas vezes falei sobre esse dia triste sem ter a chave para desvendar o principal: a motivação daquela mulher de quarenta e poucos anos, pálida como a britânica invisível que era em Paris. Guardei a cena em detalhes, talvez não os mais importantes: a ambulância na frente do nosso prédio, bem no fundo do nosso beco, o corpo da mulher estendido sobre o canteiro de flores do pátio interno sempre úmido, uma coxa magra e branca em relevo sobre a terra negra revolvida. Dava para sentir a angústia da robusta senhora, a Dina, que cuidava do jardim. Acho que chorava em silêncio pelas suas plantas.

      Para nós, ainda novos na capital francesa, foi um choque. A inglesa era gentil, sussurrava cumprimentos, deslizava pelos estreitos corredores até o seu studio no terceiro andar. Quando ouvia música, velhos vinis de rock progressivo, o som chegava até nós, no alto, como um filete de água, uma infiltração correndo ao contrário. Tudo nela era discreto, inclusive o seu caso com um francês magro e seco que se esgueirava pelas escadas ao cair das tardes. As garrafas de vinho que ela comprava no supermercado em frente à grande estação de trens batiam umas nas outras dentro do carrinho branco encardido delatando o seu hábito mais comentado pelos velhos moradores do pequeno edifício:

– Ela bebe.

      Bebia e pintava melancólicas aquarelas: paisagens da sua aldeia ao norte de Londres. Falava francês com um suave sotaque, o que a tornava ainda mais, se a palavra não soar incompreensível ou pomposamente literária, diáfana. Parecia que flutuava. Certamente havia sido uma jovem encantadora, se me faço entender sem vulgaridade. Contava-se que ela guardava em segredo o amor que vivera com um diplomata francês morto na China, irmão da nossa vizinha poliglota que terminaria perambulando pelas ruas da cidade catando jornais e revistas para encher seus pequenos apartamentos. Dizia-se que ele partira por causa dela. Nunca soube o que se dera mesmo entre eles.

      Havia muitas brigas em nosso edifício. Só a inglesa não se alterava. Permanecia inglesa, como se fosse obrigada a provar a validade do estereótipo, até quando era provocada pela velha croata, nossa vizinha de porta, que falava tudo num infinitivo definitivo:

– Ainda morrer de beber!

      Todos a chamavam de “a inglesa”. Quase ninguém dizia o seu nome. Falei com ela poucas vezes. Numa ocasião, quando voltava do supermercado puxando o seu carrinho abarrotado de garrafas tilintantes, ela me perguntou sobre o calor nos trópicos. Queria saber se era suportável e se não teria câncer de pele se fosse morar em Recife ou Natal. Ou em Manaus, acrescentou dubitativa. Eu a tranquilizei como pude. Desde então, sempre que me via, ela sorria suavemente, como se compartilhássemos um segredo, o que despertava curiosidade em quem nos surpreendia. Falava-se em tom de cochicho:

– Ela fala com os brasileiros.

      A inglesa ficou uma semana no hospital. No retorno, permaneceu trancada por mais de um mês. O francês subia com as compras e podia ser visto também pelas manhãs atravessando o jardim refeito. Um dia, a inglesa partiu. Voltou para casa. Muitos anos depois, encontrei o francês num bar de Montparnasse. Ele me reconheceu. Pediu meu endereço no Brasil para o caso de uma viagem sonhada, mas jamais planejada. Perguntei-lhe se tinha notícias da inglesa. Respondeu que poucas.

      Assim se passaram vinte e cinco anos. Na semana passada, recebi uma carta pelo correio. Era dele, do francês. Uma correspondência no velho estilo. Voltei a ver a inglesa deslizando pelos nossos corredores rústicos. Tornei a ver o francês subindo os degraus como um gato manhoso. Por que resolveu me contatar agora? É o que ainda me pergunto. A mensagem, com uma letra trémula, diz: “Ela estava cansada de esperar a morte. Tinha sido desenganada. Deram-lhe um ano de vida. Já fazia dois que resistia. Morreu ano passado, em Londres. Sempre achei que o senhor gostaria de saber disso. Ela mesma pretendia escrever para contar-lhe, mas o tempo passou e nunca o fez”.

      Num P.S., resumiu: “A croata morreu em Zagreb; a irmã do diplomata faleceu em Saint-Germain; Dina foi morar no interior; os magrebinos voltaram para os seus países; o argentino que estendia a bandeira do seu país na janela, na casa do meio do beco, vive em Buenos Aires; a família africana vizinha do argentino retornou ao Mali; a escola de comércio fechou; a floricultura da esquina permanece, mas o florista se aposentou. Se passar por Paris, avise”.

      Fiquei perplexo. Eu nem sabia o nome dele. Ainda não disse tudo o que ele escreveu. Uma informação me desconcertou mais do que tudo: “Ela nunca esqueceu a sua gentileza nem o que lhe disse sobre o calor tropical. Se pudesse, teria ido viver em Manaus”. Então eu a revi, por um instante, emergindo como um pássaro da sua aquarela verde. Talvez eu escreva para o francês pedindo mais detalhes. Talvez não o faça. A realidade exige comedimento. Eu já tive demais sobre a inglesa.


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