Vacina da opinião

Vacina da opinião

Não há imunizante contra a mentira

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      Em política, o velho sempre vence. Por isso só me fio em Platão, Aristóteles, Machado de Assis e no Centrão. Os primeiros, explicam. O último, confunde e conquista. Machado, em 9 de dezembro de 1894, “furava” os jornais de hoje com esta frase: “Tudo tende à vacina”. Apresentava a sequência: “Depois da varíola, a raiva; depois da raiva, a difteria; não tarde a vez do cólera-mórbus”. Daí para o coronavirus seria um pulo, passando pela gripe espanhola. O cronista fazia o seu elogio à ciência: “Todas as moléstias irão assim cedendo ao homem, não ficando à natureza outro recurso mais que reformar a patologia”.

      Santa ingenuidade! Salva por uma dose de ironia: “Sem desastres nem guerras, com doenças reduzidas, sem conventos, prolongada a velhice até às idades bíblicas, onde irá parar este mundo? Só um grande carregamento, ó doce mãe e amiga Natureza, só um carregamento infinito de moléstias novas”. Demora, mas chega. O fim da história pode liquidar o comunismo, não os novos vírus. Tudo recomeça. A primeira vítima é sempre a ciência por se mancomunar com a verdade, inimiga dos salvadores da pátria, cujas razões os cientistas desconhecem por insistir numa faculdade duvidosa, a racionalidade.

      Inventa-se uma vacina, surge um novo mal. Machado de Assis via um problema insolúvel: “A vacina das opiniões é difícil”. O negacionista enxerga tudo. Ninguém pode ver mais do que ele. O iluminista tem dúvidas. Elas o cegam. Nada de novo no front. Machado de Assis havia percebido o problema: “Diz-se, e com razão, que o micróbio é sempre um mal; ora, a minha opinião é um bem, logo... Erro, grande erro. A minha opinião é um bem, decerto, mas a tua opinião é um mal, e do veneno da tua é que eu devo me preservar por meio de injeções”. Quando tudo é opinião, todas as opiniões valem o mesmo.

      Acrescente-se a isso o boato, “um monstro, um inimigo público”, primeiro nome das fake news, “cultura atenuada dos acontecimentos”, ou agravada, e tem-se uma epidemia descontrolada. Daí a sugestão de Machado de Assis: “Daqui em diante a história se fará com auxílio da bacteriologia”. Ledo engano. A virologia é que interessa. O desafio é encontrar uma vacina segura e eficaz contra a opinião de que tudo é opinião. Aquilo que era um bem, diminuir a arrogância das certezas não demonstradas, virou um mal, a prepotência das opiniões que, como tal, não exigem demonstração, apenas teimosia e disseminação viral.

      O pior que pode acontecer é o acavalamento de dois surtos, o de um vírus e o das opiniões sobre o vírus. Alguns confundem o processo científico, baseado em formulação e descartes de hipóteses, com resultados científicos comprovados. Não é fácil encontrar uma opinião favorável à ideia de que a dengue é transmitida por formigas. O resultado científico não deixa espaço para esse delírio. Em política, contudo, tudo as opiniões são possíveis. Basta que encontrem apoiadores em qualquer meio de transporte. Não há vacina possível contra a emoção de estar certo contra tudo e todos. Apesar dos erros.

A opinião contrária sempre foi desqualificada. Hoje, o problema é outro: a mentira que se disfarça de opinião e quer legitimação.

 


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