O homem que não queria usar tênis
Crônica sobre os dilemas da diversidade
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Flavinho era um problema. Queria ser diferente. Mas diferente de uma maneira que a sociedade não podia aceitar. A estrutura trabalhava duramente para domesticá-lo. Ele resistia como um louco. Era chamado de teimoso. No seu entorno todos valorizavam a diversidade. Exceto a sua. De fato, o seu comportamento era considerado intolerável. Não era a sua paixão pelos estudos decoloniais que incomodava os seus amigos conservadores. Também não eram a suas críticas às contradições da esquerda que aborreciam os seus camaradas progressistas. O que ninguém podia suportar era o seu comportamento cotidiano: recusava-se a fazer pilates, andava de meia na esteira, uma vez por ano, caminhava de sapato no parque, ria dos comentários poéticos sobre vinhos e, suprassumo da excentricidade, recusava-se a usar tênis. O cerco atingiu um tom de caçada ao inimigo. Ele se queixava na terapia.
– Ontem, encontrei o Júlio na caminhada. Sabe o que ele me disse?
– O que ele disse?
– Por que não bota um tênis?
– O que respondeu?
– Não sabia que era permitido.
– Disse isso?
– Não tive coragem.
Esse era o problema. Flavinho tinha boas respostas para dar depois do acontecido. Na hora, ficava com medo de ofender o ofensor, pois se sentia ofendido com o que considerava uma perseguição implacável. Via-se como uma presa a ser abatida, um desviante a ser enquadrado, um inimigo dos bons costumes, um perigo para o consumo. No Natal, dava crônicas aos amigos. No dia dos namorados, davam poemas. Não era sovina. Apenas não entendia a razão de se considerar uma garrafa de vinho ou um charuto mais valioso do que um texto autoral ou mesmo escolhido, para garantir a qualidade, de um grande escritor.
Quanto mais resistia, mais o cerco se fechava. Os primeiros sintomas do seu comportamento aberrante foram notados quando se constatou que não corria para a praia em feriados. Ia raramente a shopping. Não tinha personal para coisa alguma. Não se interessava por mix de folhas verdes. Afirmava que previdência privada só funciona sem país sem inflação. O caso foi considerado grave quando se soube que não tinha carro, continuava a chamar bike de bicicleta e preferia o twitter ao instagram. Outra coisa que incomodava as pessoas: o fato de ele não ter gato nem cachorro. A pressão para que adotasse um animal não parava de crescer. Três episódios definiram o seu destino. No primeiro, no centro da cidade, encontrou o prefeito, velho amigo.
– Continua querendo mudar o mundo?
– Não, prefeito, o mundo é que continua querendo me mudar.
– Relaxa e goza, ou será atropelado.
O conselho ficou martelando na sua cabeça. Era final de ano. Precisava resolver a questão dos presentes de Natal. Como não queria decepcionar as pessoas queridas, distribuiu vales-presente. Cada um que escolhesse o que achasse melhor. Sentiu-se vencido ao fazer isso. O segundo golpe veio com os presentes que recebeu: seis pares de tênis: da mulher, da mãe, da irmã, de um colega de extrema direta, de um amigo de extrema esquerda e de uma vizinha new age, que lhe mandou um enorme par de tênis fosforescente. A situação chegou a tal ponto que foi interpelado na rua por um desconhecido, um homem incisivo:
– Afinal, qual o seu problema com tênis?
– Como sabe que tenho problema com tênis?
– Moro perto daqui e só lhe vejo de sapatos.
– Bem, quer saber, acho tênis feio e desconfortável.
– Que absurdo! Por que não aceita ser como todo mundo?
– Porque sou único.
– Comunista!
O drama de Flavinho era que todo argumento era reduzido a uma só categoria: teimosia. Na sociedade da escolha, reclamava, não podia escolher. “Tá bom, conta outra”, rebatiam os mais íntimos. Um dia, numa feira, pegou-se cobrindo os sapatos com uma sacola. Os olhares de soslaio, ou mesmo diretos, para os seus pés tiravam-lhe a paz. Desistiu das cenouras. Saiu meio correndo com as bananas. Ouviu:
– Sujeitinho esquisito!
O homem que falou assim usava gigantescos tênis brancos fofos e carregava no colo um poodle. Uma mulher com um cachorro num carrinho de criança parecia perplexa com a cena. Finalmente deixou escapar:
– Cada figura!
Desnorteado, Flavio atravessou a avenida como um fugitivo. Era um defensor de todas as singularidades. Lutava pelas minorias. Usara tênis na juventude. Aos poucos, apaixonara-se pelos sapatos. Só tinha dois pares: um leve e um mais pesado. Usava-os até expirarem. Vivia no mundo da lua, onde cada um se vestia como queria e ninguém notava. Tinha, até segundo o padrão, bom gosto e sabia, quando queria, mostrar-se sofisticado, mas jamais exatamente conforme a hora. Isso lhe trazia grandes problemas. Era visto como um desagregador. Como confiar num cara que nunca usa tênis, dissera-lhe o chefe ao recusar-lhe uma promoção mais do que merecida. Até o presidente dos Estados Unidos usa tênis, explicou-lhe um especialista em comportamentos contemporâneos durante um colóquio sobre felicidade. A mulher já não falava do assunto. O divórcio, se acontecesse, seria por essa razão.
Absorto, Flavinho não viu o ônibus. Foi atropelado ao meio-dia. Um sapato saltou a dez metros. As bananas espalharam-se no asfalto. Foi sepultado com um flamante par de tênis tipo jogador de basquete.
*
P.S..: o autor desta crônica comprou tênis novos nesta semana.