Crônica e eternidade

Crônica e eternidade

De que falam os cronistas?

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      O cronista finge que escreve sobre o presente. Na verdade, só lhe interessa a eternidade. A maior mentira já dita sobre a crônica é que ela é perecível. Não. Perecíveis são os comentários atrelados a fatos. A crônica é um fingimento do bem. Finge falar do pequeno para se encastelar nas estrelas. Como saber se um texto é uma crônica? Se, embora leve, nunca perder seu peso e sua atualidade. De resto, todos os gêneros são cercadinhos fadados ao fracasso. O escritor pula a cerca. Capistrano de Abreu queria saber se “Memórias póstumas de Brás Cubas” era romance. Machado de Assis respondeu que sim e que não, a mais precisa das respostas do gênero, “que era romance para uns e não o era para outros”. A crônica engana todas as balanças. Só fala de coisas essenciais: a alma, a vida, a morte, passarinhos, as flores.

      Não se ocupa do que não tenha peso na vida. Quem trata das coisas passageiras são os economistas e comentaristas políticos. A maior vaidade do cronista, que para ser cronista precisa ser humano, demasiadamente humano e paradoxal, é querer ganhar prêmios. Eu já quis. Levei, não levei outros que me pareciam mais merecidos. Uma senhora de 99 anos, Dona Arlinda, me deu uma lição inestimável quando me queixei:

– Ninguém é obrigado a gostar do que a gente faz, menino.

      A grande obra força a pessoa a falar dela. Já notaram como Machado de Assis, Guimarães Rosa e Mario Quintana fazem falar deles? Abre-se a boca e quando se vê salta uma frase de um deles. É tanta frase bonita, tanta palavra esquisita que nem em sonhos falei... Viram? A gente imita, parafraseia, copia. Essa história de que tudo depende do gosto de cada um está mal resolvida. Se eu soubesse como resolver, contribuiria para a história da humanidade, que é um dos meus mais modestos desejos, junto com a vontade de morar na lua. Tenho certeza de que deve existir vida extraterrestre, até mesmo um planeta no qual todos os habitantes são cronistas e todos leem uns aos outros.

      Se o cronista finge, nunca mente. Como pode ser? Que contradição é essa? Não é contradição, mas paradoxo, nome que damos às contradições que amamos. O cronista mata o tempo dos outros com suas ninharias fundamentais. Homens engravatados têm mais o que fazer. Será possível ainda hoje escrever crônica de gravata e paletó? Ainda se diz paletó? Uma vez uma moça me criticou por ter chamado terno de costume. Admitia que chamasse de fatiota. Era uma personagem de Balzac. Há muito desisti de separar a ficção da realidade. Velhos cronistas dão conselhos como quem dá balas a crianças. Eu sempre atraio tutores. Conheci um simpático leitor que quer me indicar livros e fixar tempo para eu mostrar que incorporei os novos conhecimentos. Muitos tentaram. A minha rebeldia frustrou todos eles, inclusive os que queriam me ensinar a escrever romances. Poesia, não me deixam. Julgam que o céu é muito longe a olho nu.

      Li bons cronistas. Só um genial: Michel de Montaigne. Admiro a segurança que ilumina velhos escribas, jornalistas ou não, dando-lhes a certeza de que sabem separar o joio do joio. Jovem repórter eu tive um sonho: escrever a crônica, como se dizi então da descrição do jogo, de um Gre-Nal. O editor, figura ainda importante no meio, nunca deixou. Atribuo tudo que sou a essa frustração que me custou anos de terapia e acabou por deixar de Freud e Lacan sem recursos para me aliviar.

Sou cronicamente cronista, o que faz poeta e errante.

Fora disso, comento os fatos que me batem à porta.


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