Autoironia crônica
Era no tempo das viagens
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Houve um tempo em que o cronista podia rir de si mesmo. Era um truque para fazer o leitor chorar. Podia dizer “eu sou o pior”. O leitor generoso tratava de discordar. Sempre havia, porém, alguém que tomava a afirmação literalmente e, quando encontrava o autor, tratava de consolá-lo, o que provocava situações hilariantes e impagáveis.
– O senhor não é o pior, eu garanto.
– Eu sei. Sou o melhor.
– Não, não se constranja de admitir que se acha o pior.
– Eu só estava brincando.
– Brincando é que se fala sério.
– Sério. Era brincadeira.
Alguns, divertidos, sabiam que era fingimento, mas fingiam que era literal para declarar vitoriosamente: “Hoje, estamos de acordo”. A vida era tão leve. Machado de Assis e Nelson Rodrigues podiam rir do que eram. Não dá mais. Tudo virou confissão. O cronista dizia eu para que lessem nós. Agora, é estimulado a ser impessoal para que lhe deem a credibilidade da isenção. O leitor quer apenas opiniões imparciais.
– Parabéns pela isenção.
– Mas dei a minha opinião.
– Concordo com ela.
Os jornalistas exigem juízes imparciais. Estes, por vezes aborrecidos, devolvem: por que não jornalistas? A teoria garante que a imparcialidade é impossível. Neste caso, por que criticar a parcialidade? O cronista não tinha compromisso com a certeza. Salvo com a certeza das suas incertezas. A obrigação da crônica era ser leve para lavar as lágrimas derramadas pelos fatos, que morreram. No lugar deles, surgiu a representação dos fatos. Um cronista só era levado a sério se fizesse rir das coisas graves e chorar pelas pequenas coisas. O riso, contudo, tinha de ser leve, suave, sem escracho nem desrespeito. O choro não podia ser dramático. Só valia a elegância.
O cronista podia dizer “eu não entendo de nada”. Era um especialista em generalidades. A tirada soava como declaração socrática de modéstia. Era coisa de sábio. Agora, é confissão de ignorância e estamos conversados. Há quem diga que Pelé não fardaria no futebol atual. Nelson Rodrigues também não arranjaria emprego de cronista por incapacidade crônica de controlar a sua ironia e ainda mais a sua autoironia. A clínica geral da crônica está sob suspeita.
– Qual o seu partido?
– O coração.
– Não brinque com as palavras.
– Mas é o meu ofício.
– Procure um trabalho mais útil.
– O que devo fazer?
– Tomar partido.
– E se não for o seu?
– Troque.
– O que dirão os outros?
– O mesmo.