Quo vadis, Aida?

Quo vadis, Aida?

Filme mostra o fiasco da ONU na Bósnia

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      Esse é o título do melhor filme estrangeiro, aliás talvez o melhor filme de toda a competição, da safra que disputou o Oscar 2021. Tão bom que perdeu para o indigesto, na minha modestíssima e atrevida opinião, “Druk”, filme sobre professores beberrões. “Quo vadis, Aida”, de Jasmila Zbanic, que pode ser visto em plataformas como “Now” e outras muito em voga, envergonha tanto a missão da ONU na guerra da Bósnia que ficaria certamente muito feio dar-lhe um prêmio dessa magnitude internacional. O filme conta a história de uma tradutora tentando salvar o marido e os filhos da morte nas mãos genocidas dos sérvios que tomaram Srebrenica. O que se vê na tela? A estupidez e a indiferença dos capacetes azuis encarregados de proteger a população agredida por inimigos raivosos. Triunfa plenamente a burocracia.

      Quando Aida pede que a ONU salve sua família dando-lhe um crachá da missão ou adotando um estratagema qualquer, ouve de um militar de alta patente que é preciso cumprir as regras. Sim, isso. Por que os jurados não escolheram “Quo vadis”? Por cinismo, desinteresse por essas guerras do distante ano de 1995 ou por empatia com os simpáticos homens de meia idade buscando no álcool um pouco de criatividade? Duvido que os jurados estivessem realmente preocupados com a reputação da ONU. Em todo caso, trataram de protegê-la. O que o longa bósnio mostra é o fiasco da operação. No pior momento, o comandante tenta falar com as altas autoridades da ONU. Todo mundo saiu de férias. Nada se pode fazer. A “banalidade do mal”, conceito que Hannah Arendt popularizou em relação aos nazistas, aparece em alta: vizinho massacrando vizinho, homens babando ódio e dizimando conhecidos.

      O horror também aparece no burocratismo dos missionários da ONU. Nada podem fazer para salvar vidas porque uma máquina de fazer crachás quebrou ou por não receberem o apoio prometido. Como pode uma obra de tamanha relevância ser preterida? Tenho visto pilhas de filmes e séries. Até agora, desta época de pandemia, “Quo vadis, Aida?” é o melhor. Causa tanta indignação que tira o sono. Melhor não ver antes de dormir. Faz pensar na covardia de governantes negacionistas. A gente imaginava que a ONU estava lá para tentar salvar vidas a todo custo. Não. Inventar um crachá para salvar uma vida seria gravíssimo do ponto de vista das normas e possivelmente de algum código de ética.

      Há apenas 25 anos, no coração da Europa, homens eram executados amontoados em recintos fechados com tiros disparados por aberturas no alto das paredes. Na Índia atual não há mais lugar nos crematórios ao ar livre para a queima de corpos das vítimas da Covid-19. A comunidade internacional tenta ajudar com seu passo de missão da ONU na Bósnia. Para os que odeiam spoiler, um alento: o filme é tão detalhadamente complexo e revelador que não há como resumi-lo neste espaço. A indiferença burocratizada da missão é tão grande que em alguns momentos fica a impressão que até os agressores conseguem ter um pouquinho mais de atitude humanitária. O Oscar amarelou. Que feio.

 


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