Mutações sem lirismo

Mutações sem lirismo

No país das 400 mil mortes por covid

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      Da pouca luz que havia se fez a noite. E do escuro surgiu o desalento, que também atendia pelo nome de estupor. Onde se insinuava a rosa cresceu a erva daninha. Nunca houve sol para todos, mas de algum modo os fachos de luz semeavam alguma esperança. Então os buracos, imensas bocas vorazes, engoliram as fagulhas e tudo se transformou numa massa disforme de perplexidade. Os iluministas acreditavam na marcha do progresso, sempre para frente, de estação em estação, até o ponto final, o estágio emancipado da humanidade. Ignoravam os movimentos caóticos que tudo podem devorar ou explodir.

      E das janelas não se viu mais o horizonte, nem sequer como ilusão de proximidade, ficando ao longe uma imóvel barra degradada de cores sendo consumidas por um vírus comedor de luzes. Nesses dias, que nem mais eram dias pela ausência de luz, cada um se preparava para tentar sobreviver. Alguma voz corajosa ainda entoava canções de amores antigos, “e quando sinto cheiro de jasmim/te vejo, Açucena/cuidando de mim”. O tempo, porém, era de desespero e uns já nem sempre podiam cuidar dos outros. Morria-se no isolamento. Havia também a morte das esperanças, das utopias, dos sonhos compartilhados e até do bom senso.

      Restavam as imagens, as metáforas, as frases atiradas na escuridão, que faiscavam antes de desaparecer como rápidas cuspidas de um vulcão quase extinto. Nesses tempos sombrios, que nunca serão esquecidos pelos que tiverem a sorte de viver para lembrar, jogava-se futebol, bebia-se para perder o senso da realidade e sofria-se com a falta de expectativa. Mesmo assim, ouvia-se uma voz dizer a cada manhã “está tudo bem”, “vai passar”, “está no finzinho”, “coragem”. Então cada um, mesmo sem essa coragem, fazia de conta que estava bem para não esmorecer nem definhar antes do tempo. Viver era um ato de resistência. Mas a resistência já não gritava a plenos pulmões.

      Talvez se pudesse ver as estrelas sendo devoradas enquanto as notas musicais silenciavam. Por um lado, havia aquela vontade de viver, um vitalismo transbordante, indomável, irracional e suicida. Ou assassino. Por outro lado, havia o medo, o temor de nunca mais ser como antes, de jamais pronunciar a palavra normalidade sem estremecer e essa necessidade pueril de contar aos sussurros, para não enfurecer os fiscais da tristeza alheia, coisas que antes eram banais e sumiam como perfumes exauridos a cada entardecer de outono. O mundo já não era o mesmo, embora alguns insistissem em dizer que nada mudara, que era só o vento lá fora, assobiando por ser da sua natureza sutil, enquanto o contador das mortes acelerava chegando a 90 mil por mês. Numa quinta-feira, chegou-se a marca de 400 mil mortos. O horror!

Nunca mais ou sempre – Em breve, meio milhão de mortos. E sempre mais. Até quando? Quando se poderia dizer nunca mais? Também se podia cantar melancolicamente: “Foi assim/Como um resto de sol no mar/Como a brisa da preamar/Nós chegamos ao fim”. Melhor cantar baixinho para não ser acusado de dramatizar. Melhor chorar sozinho para não ser derrotado pelos que nunca choram, salvo quando perdem dinheiro ou poder. As estações do ano sucediam-se ignorando as previsões dos calendários: sol a pino, folhas caídas, pés gelados e flores renascidas. Era disso que se tratava: de prever o renascimento das flores. Alguém se levantou e disse: “Deixemos de lado a pieguice. Vida que segue”.

      Havia passatempos disponíveis: colecionar estrelas, armazenar metáforas, estocar sorrisos, recordar abraços, abrir pastas guardadas para a aposentadoria, imaginar o futuro, olhar fotografias da época das grandes viagens (litoral, interior, exterior), tocar superfícies higienizadas para ativar o tato, esgotar o catálogo de filmes, de séries e de novelas, reler clássicos, escrever cartas para desenterrar mensagens e tecnologias antigas. Tudo por um fio. O tempo se perdia, contudo, em tarefas inúteis como separar o joio do trigo. Via-se o joio proliferar em cada discurso negacionista, em cada luz apagada, em cada manifestação de repúdio à ciência, em cada mentira disseminada por oportunismo ou por convicção ideológica. O joio era acinzentado.

      Se as luzes nunca haviam sido brilhantes como deveriam, refulgiam dentro da longa noite como pedras preciosas, até que o escuro se fez tão intenso que tragou a imensidão das cores e estendeu um tapete de sombras de sul a norte. Não há, porém, mal que dure sempre e muitos começaram a crer que o mal se extinguirá. Ficaremos livres do vírus. Voltaremos a andar sem máscaras, cantaremos como se fôssemos tenores, veremos as luzes se reacendendo como pirilampos, veremos o ouro do trigo e verde das matas vicejarem duradouramente.

      Quando será isso? Especialistas avaliam que, com a aceleração das vacinas e a manutenção dos cuidados básicos, condições complementares, poderemos respirar num tempo não muito distante. Então o sol brilhará dentro da noite. E do escuro se fará a luz. E desta a esperança ensolarada. Calcula-se que o mal será derrotado em 2022.

 


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