Missão humanitária no Sudão do Sul

Missão humanitária no Sudão do Sul

A capitão do Exército Adriana Hartmann é uma das integrantes do primeiro grupo de mulheres brasileiras a ingressar em uma missão humanitária individual da Organização das Nações Unidas (ONU)

Felipe Faleiro

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A capitão do Exército Adriana Hartmann, 38 anos, do Colégio Militar de Porto Alegre, está fazendo história. Ela é uma das integrantes do primeiro grupo de mulheres brasileiras a ingressar em uma missão humanitária individual da Organização das Nações Unidas (ONU) no Sudão do Sul. O país africano, independente em 2011 e considerado um dos quatro mais pobres do mundo, vive um estado de convulsão social e política sem perspectivas de término. É esta realidade que Adriana, substituta de outro militar brasileiro, vai encarar durante um ano. No dia de sua viagem, em seu apartamento no bairro São Geraldo, em Porto Alegre, a militar contou suas expectativas e como seu exemplo pode inspirar outras pessoas.

Conte um pouco de sua história e de como chegou até este momento.

Nasci em Santo Cristo, interior do RS, e me licenciei em Matemática. Sou professora da área. Ingressei no Exército como tenente temporária em 2006 e fiquei três anos no Colégio Militar de Santa Maria. Depois fui aprovada no concurso para a Escola de Administração do Exército [atualmente, Escola de Saúde e Formação Complementar do Exército], em Salvador, onde morei por um ano e aprendi técnicas militares. Depois fui para Brasília, para servir no Colégio Militar. Fiquei lá por quatro anos e depois vim a Porto Alegre, onde estou até hoje, no Colégio Militar.

Como é, para a senhora, participar de uma missão humanitária tão importante para o Brasil e ainda mais como uma das mulheres pioneiras?

É uma oportunidade de crescimento tanto pessoal quanto profissional, uma forma de aplicar conhecimentos adquiridos ao longo da minha carreira militar e ajudar pessoas que tanto precisam do nosso auxílio. No meu caso, principalmente mulheres e crianças. É muito relevante poder prestar essa ajuda e levar o nome do Exército e do Brasil para o Exterior. Estou muito feliz e muito orgulhosa. Vou fazer o possível para bem representar o Exército e as mulheres militares. Tenho muito orgulho de ser militar e principalmente de ser dessa turma pioneira. Sou muito grata também ao QCO [Quadro Complementar de Oficiais]. O Exército já teve algumas observadoras militares, mas agora que ele está começando com essa preparação específica para isto. É um programa da ONU que visa aumentar o número de mulheres observadoras militares nessas missões individuais.

O Sudão do Sul é um dos países mais pobres do planeta em termos de Índice de Desenvolvimento Humano. Relatório recente da ONU aponta que mais de 70% da população deve enfrentar fome extrema. O que a senhora espera encontrar?

Eles realmente precisam de ajuda, por isso a ONU está lá. Nossa missão é de ajuda humanitária e irei como observadora militar, então realmente espero encontrar bastante pobreza e sofrimento. Preciso observar e relatarei a realidade para a ONU, para que ela possa intervir por intermédio das suas agências. Meu papel é basicamente conversar com mulheres e crianças para saber da realidade delas. O Exército estimula e treina muito valores como autoconfiança, comunicabilidade, liderança, e, em cima deles, penso que conseguirei auxiliar de alguma maneira estas pessoas.

Como foi sua preparação para este trabalho?

O Estágio de Preparação para Missões de Paz (EPMP) ocorreu no Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil (CCOPAB), no Rio de Janeiro. Ele é conduzido todo no idioma inglês já pra trabalhar com a ambientação, e foi dividido em três partes. A primeira teve duração de duas semanas. Por meio do ensino a distância estudamos toda a estrutura da ONU nas missões de paz. Concomitante a isso fizemos o que o Exército chama de mobilização. Recebemos todo o material necessário para desempenhar a missão, como capacete, colete, além de passar por avaliações físicas e psicológicas. A segunda fase foi um curso intensivo de inglês, com duração de quatro semanas, treinando termos específicos da missão. E, na terceira e última fase, fui capacitada para a minha missão. Somos imersos em um ambiente multicultural, é simulado todo o cenário como se estivéssemos no Sudão do Sul. Podemos colocar em prática tudo que aprendemos. Com muito orgulho participei do primeiro estágio específico para militares do sexo feminino para missão de paz. Foi algo único, conhecer mulheres vindas de vários cantos do Brasil, cada uma com sua experiência e bagagem cultural. Foi uma experiência muito enriquecedora, e cresci muito com ela.

Como será sua missão? A senhora estará lotada em alguma parte do país?

A ONU tem algumas bases no Sudão do Sul, tanto na capital, Juba, quanto no interior. Inicialmente vou para Juba resolver toda a questão de quarentena e documentação. Haverá um curso de ambientação quando chegarmos lá, chamado Induction Training. Isto deve durar em torno de duas semanas. Depois, serei transferida para o local definitivo, que é uma base no interior. Só fico sabendo a base para onde vou quando chegar no país. Lá a gente vive em contêineres. Quero destacar que é diferente de como as pessoas às vezes veem. Toda vez que falo que vou com uma missão individual, me dizem relembrar que o Brasil foi para o Haiti, mas para lá eram enviadas tropas e aviões. Minha missão é diferente. Vou sozinha para o aeroporto e pego um avião comercial. Chegando lá, me junto com pessoas da ONU do restante do mundo e irei com essa equipe para o interior do país. São patrulhas que partem para os locais onde há a necessidade de conversar, analisar, conhecer, desbravar a situação, saber o que está acontecendo nas pequenas comunidades.

Como a senhora acredita que será lidar com mulheres e crianças no Sudão do Sul? Praticar esta sensibilidade, sendo a senhora também mulher.

Estou muito esperançosa, porque, sendo professora, já desenvolvo um trabalho com crianças e adolescentes diariamente. Isto de lidar com situações diversas já vivo no meu trabalho. Óbvio que naquele país as situações serão completamente diferentes. A gente sabe que mulheres e crianças sofrem muito, inclusive abusos sexuais. Mas gosto e me encanta muito esse trabalho de conversar, tentar entender esta comunicação, esta troca de experiências. Estou muito feliz de desenvolver esse papel, de poder conversar com mulheres, conhecer realidades diferentes, não só do Sudão do Sul, mas vou encontrar também pessoas do mundo inteiro trabalhando em prol do mesmo objetivo.

Como foi para a senhora receber essa notícia, e como foi a reação da sua família?

Inicialmente recebi o convite do gabinete do Comandante do Exército, e foi um susto e uma surpresa. Não estava pensando nisso nesse momento e nunca havia feito nada parecido. Mas foi com grande alegria que o recebi. É como um prêmio, um reconhecimento da minha carreira, de toda essa minha trajetória ao longo desses anos no Exército. É um sentimento muito bom, realmente de poder ajudar, de mudar um pouco o rumo da carreira em uma missão tão nobre e importante. Sou divorciada e não tenho filhos. Moro sozinha com meu vira-lata Spike, que ficará aos cuidados de minha mãe.

Como a senhora acredita que seu exemplo, indo para esta missão, pode inspirar outras mulheres que estão ingressando no serviço militar, ou que sonham em fazê-lo?

Espero poder inspirar muitas mulheres. Às vezes achamos que não somos capazes, que o caminho é muito difícil ou não é para a gente. Por exemplo, sou professora de matemática. E consegui porque temos todas estas habilidades já trabalhadas dentro do Exército. Todas as militares, não apenas do Exército, mas nas Forças Armadas, Marinha, Aeronáutica, a própria Polícia Militar, sem dúvida nenhuma, estão capacitadas para este tipo de missão. Destaco aqui, para as mulheres que pensam em algum dia realizar algo deste porte: estudar inglês, porque a missão da ONU é toda em inglês, e tenho feito aulas do idioma todos os dias desde que recebi a missão, bem como cuidar da parte física e da saúde mental. Basta acreditar no seu trabalho, estudar, manter sempre a preparação individual, confiar no seu aprimoramento pessoal e profissional que dá certo.

Fez contato com os colegas que já estão na missão? O que eles lhe relataram?

Sim, eles me acalmaram bastante. Hoje em dia, há esta facilidade em conversar pelas redes sociais, WhatsApp, conseguimos nos comunicar com as pessoas distantes. É muito interessante saber o que eles estão vivendo lá, porque a realidade é muito diferente, tanto nas coisas básicas que tenho que levar na mudança, como na forma exata de como está sendo desenvolvido o trabalho. Os brasileiros lá estão sendo muito receptivos, porque eles estão vivendo essa experiência também e é desta forma que espero ser com os próximos que irão em 2023. Estou sendo muito bem acolhida e aguardada pelos brasileiros que já cumprem a missão em Juba, então me sinto muito tranquila.

O que a senhora está levando nas malas? Do que acredita que sentirá mais falta daqui?

Estou levando um pouco de comida, pois sei que alguns itens do Brasil vão fazer falta lá. Os costumes deles são bem diferentes dos nossos. O chimarrão, como toda boa gaúcha. Estão na mala a cuia, a bomba, erva-mate. Isso não tem como não levar, não consigo me imaginar um ano sem meu chimarrão. Levo também as coisas mais típicas brasileiras, e que sei que lá terei dificuldade de encontrar, como café. Além de todo o material militar que recebi do Exército. Também a camisa da Seleção Brasileira e um monte de coisas do Brasil. Dizem que eles gostam muito do Pelé, não podem ver um brasileiro porque é Pelé, Ronaldinho e Neymar. O futebol é uma forma que a gente tem de se aproximar das pessoas de lá. Eles veem a bandeira do Brasil e já associam ao futebol. Isso é do mundo.É da índole do brasileiro gostar de falar, conversar e conhecer pessoas novas. Por essa característica, o brasileiro é muito bem recebido lá pela população.Também levo a bandeira brasileira, para a qual vou olhar sempre. E ainda algumas lembrancinhas que me recordem de casa, para eu não me sentir tão sozinha.


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