Catador e, agora, formado na Ufrgs

Catador e, agora, formado na Ufrgs

Alexsandro Cardoso foi o primeiro de sua comunidade a conquistar um diploma de graduação universitária

Giullia Piaia

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Alexsandro Cardoso, 42 anos, foi o primeiro de sua comunidade a conquistar um feito que apenas 20% da população brasileira conquistou: um diploma de graduação universitária. Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Alex também é representante da Ascat, cooperativa de catadores da Cavalhada, em Porto Alegre, e do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis, além de já ter representado a categoria em órgãos como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT). A apresentação do seu trabalho de conclusão de curso (TCC) no dia 1º de março, dia internacional dos catadores, foi no galpão da cooperativa, transformado em palco para o conhecimento. Alex se emocionou ao comemorar com amigos, familiares e colegas o objetivo cumprido de “fortalecer e ampliar os conhecimentos em torno da pauta dos catadores”. Em entrevista ao Correio do Povo, ele conta um pouco de sua história.

Desde quando você é catador e como foi sua entrada na Ufrgs?

Eu sou a terceira geração de catadores. Minha vó e minha mãe eram catadoras e eu comecei a catar desde criança. Não sei precisamente quando foi que eu comecei a trabalhar. Na minha ideia, eu estava brincando de separar material, de limpar o pátio, de fazer coleta com os pais na rua. Então, a vida inteira foi em cima da catação dos materiais. Fui pai aos 16 anos e aí tive que parar de estudar, em consequência do trabalho. Parei na 5ª série do ensino fundamental e passei 20 anos sem estudar. Sempre que eu passava na frente da escola, sentia vontade de voltar a estudar, mas sempre jogava para o próximo ano. Quando eu via, o prazo passava e eu não tinha voltado aos estudos. Em 2014, oito anos atrás, eu saí mais cedo da cooperativa, cheguei em casa, tomei banho, olhei para o portão da escola, que estava aberto, e fui até lá. Perguntei para a diretora como é que eram as condições para eu iniciar os estudos. Contei para ela como era a minha vida, que eu viajava muito para outros estados, outras cidades, mas queria voltar a estudar e que se eu fosse acolhido pelos professores e pela escola, iria me sentir muito honrado. Porque eu iria ser um bom aluno, não iria deixar de fazer tarefas por estar fora. Não queria só o diploma, queria realmente a formação. Em dois anos conclui o ensino fundamental pelo EJA [Educação de Jovens e Adultos], me formando no final de 2015. Tem um detalhe que foi muito marcante no ensino fundamental, eu fiz parte da última turma que se formou na Escola Municipal Neusa Goulart Brizola, que fica dentro da vila.

Eu queria avançar. Saí dali e fui direto para o ensino médio. Fiz a inscrição online e fui selecionado para ficar na escola Cônego Paulo de Nadal. Consegui fazer as três séries em um ano e meio, me formando na metade de 2017. Aí procurei um cursinho popular, o Emancipa, para me especializar naquilo que eu tinha dificuldade, que era português, redação, que para mim sempre foi uma coisa muito difícil. Fiz o vestibular da Ufrgs em 2018, e entrei como cotista declarado negro no curso de Ciências Sociais, um curso pelo qual eu já tinha muita paixão e que, na prática, eu já exercitava o processo de leitura da organização social.

Com os catadores?

Essa foi minha atividade desde 2001, quando comecei a mobilizar e organizar os catadores do Brasil a partir do Movimento Nacional dos Catadores. Então, eu realizei um grande sonho nesse primeiro momento. Olho para ele e penso que a cada passo tem uma comemoração, mas ele também é um passo para outro desafio ainda maior. Eu me formei no ensino fundamental e fiquei muito feliz. As pessoas pelas redes sociais, que me acompanham, ficaram muito felizes. Quando passei para o médio, foi a mesma coisa, declarações na internet. Depois que consegui entrar na Ufrgs, aí virou notícia em vários meios de comunicação. Eu comecei nos estudos e no terceiro ano começou a pandemia. Com o processo da pandemia, passamos a fazer aulas online. E eu fazia a parte administrativa do trabalho da cooperativa, então eu não precisava ir até ela. Era uma pessoa a menos para oferecer risco de contaminação. Meu trabalho e meus estudos ficaram 100% home office e por isso tive tempo de fazer outras coisas. Nesse intervalo, organizei várias campanhas de solidariedade para os catadores e fui convidado pelo professor Jean Segata, que se tornou depois o meu orientador de TCC, para fazer parte, como pesquisador, da Rede Covid-19 Humanidades, que é um grande projeto da Ufrgs e outras seis universidades, para ampliar a pesquisa sobre o impacto da Covid-19 na vida das catadoras e dos catadores. E ali eu tive um primeiro olhar de catador pesquisador para a categoria. Então, foi muito importante para mim esse momento, de conseguir olhar para a categoria como um sujeito de dentro, tratado de forma igual, como companheiros irmãos de trabalho de luta e, ao mesmo tempo, nessa condição de pesquisador, que estava aplicando questionários, organizando reuniões, levantando informações, enfim, praticando a pesquisa de Ciências Sociais. E aí olhando para isso, e olhando para mim enquanto colega, eu consegui ver uma potência maior nas pessoas que são de dentro da própria cooperativa. Teorizando, tem uma coisa que chamamos de imaginação sociológica, que é aplicar essa teoria em outros povos. E aí eu comecei a pensar: imagina se um estudante quilombola faz a pesquisa sobre o seu próprio quilombo, conversando com seus parentes, com seus amigos e construindo um trabalho científico que tem toda a base da teoria social, mas que é trabalhado de igual para igual com os seus informantes. Eles param de ser objeto e passam a ser atuantes do trabalho, buscando o objetivo de fazer um bom trabalho que traz benefício para todo mundo porque o pesquisador é um sujeito que é do seu próprio grupo. Uma das bases da minha pesquisa foi esse olhar para dentro, para dentro daquele meio que eu já vivia. É muito mais profundo porque não sou um sujeito de fora, não sou apenas pesquisador, sou colega, amigo, companheiro, irmão. Quando eu consegui construir esses processos, eu vi a necessidade de escrever e deixar uma marca, como um caminho, para que as outras pessoas pudessem ver que o catador conseguiu voltar a estudar e ingressar na universidade, que é o sonho de todo mundo. Escrevi então o livro chamado de Lixo a Bixo, que conta um caminho para que outras pessoas possam olhar para essa potência de transformar o estudo em uma forma de melhorar as condições de vida, não de uma forma individual, mas coletivamente. Aí eu trouxe nesse livro todo esse debate sobre a educação pública com qualidade emancipatória e que consegue desenvolver as pessoas convidando as pessoas, principalmente os mais pobres, para retornarem aos estudos. Esse livro já vendeu mais de mil exemplares e teve inclusive matéria no Correio do Povo.

Quando eu cheguei na reta final da conclusão do curso, eu já estava com saudade. Eu nem tinha saído da universidade ainda e eu já estava com saudade, pensando que ali também é um pedaço meu, ali é uma parte do meu chão, que não gostaria de abandonar. Então, quando eu entreguei o trabalho de conclusão, no dia 23 de janeiro, meu orientador respondeu dizendo que o trabalho estava muito bom. Nisso eu entrei no site do Programa de Pós-graduação de Antropologia da UFRGS para ver quando seria o edital da seleção de mestrado e vi que o edital acabava no dia 25. E aí eu comecei a organizar toda documentação, organizar todos os certificados, fiz a prova, fui bem, e avancei para entrevista. Consegui então ser aprovado na seleção do mestrado. Faltava apenas ser aprovado na apresentação do TCC e que bom que deu tudo certo, que bom que as pessoas compareceram, que bom que as pessoas estavam mais felizes do que eu naquele momento. Olhar para a minha mãe e ver que ela estava satisfeita foi uma coisa muito emocionante para mim. É aquela história que ainda se repete de ser o primeiro a ingressar na universidade, de ser o único a concluir, isso se refletia na alegria dos meus amigos da cooperativa, das pessoas que estavam ali e das mais de 800 pessoas que acompanharam de forma online.

Acho importante colocar que essa história não é sozinha, por mais que eu acabe levando os méritos, ela é construída a várias mãos. Não tem como não trazer a importância da educação pública, principalmente para as periferias, e a importância das cotas. Se elas não existissem eu não teria entrado na universidade, não teria trazido essas discussões novas que eu tô trazendo. Nós vivemos em um Brasil de muitas desigualdades. Essas desigualdades não são por falta de dinheiro, falta de tecnologia, falta de conhecimento, falta de alimentos. Essas desigualdades são pela grande concentração que há um lado e da falta que há em todos os outros. Com a pandemia, as pessoas passam a ocupar a sinaleiras, as pessoas passam a viver em uma condição quase sub-humana e onde os grandes milionários enriqueceram mais ainda. Ter pessoas da periferia ocupando esses espaços de saber é extremamente importante justamente para conseguir ter essas discussões, agregando questões que são extremamente importantes para a sociedade toda. Quando um de nós avança, avança toda uma categoria junto. É importante para mim não ser um sujeito individualista, mas coletivo e de querer ver essa gente toda feliz.

Você entrou agora para o mestrado em Antropologia na Ufrgs, o que pretende pesquisar?

Quero aprofundar essa relação olhando para as cotas. Eu vejo que mudou o perfil dos estudantes, que não são mais só de classe média, média alta, como era na universidade federal. Vários estudantes são pobres, da periferia. Cerca de 50% da população da Ufrgs são pessoas advindas do regime de cotas, são o povo da periferia, negros, indígenas. E, mesmo assim, vejo como a universidade ainda insiste nas metodologias de pesquisa em que o pesquisador é um sujeito afastado, que não pode se contaminar com o sujeito, com a pessoa que ele tá pesquisando, com o objeto. É muito comum falar o “objeto de pesquisa”. E aí eu quero aprofundar muito porque quero que a gente possa se encontrar enquanto ser humano e não como coisa que só gera conhecimento para o outro, para academia e não para si, para sua comunidade.

Como você chegou à liderança do Movimento Nacional dos Catadores?

Agora vem a parte engraçada. Eu era um guri muito tinhoso, fazia muita bagunça dentro da cooperativa, fazia perguntas, o pessoal ficava louco comigo. Eu comecei a trabalhar lá com 16 anos, mas não podia porque era menor. Então, quando aparecia alguma visita lá, eu me escondia. E aí precisava mandar alguns delegados para a reunião de fundação da Federação das associações de catadores do RS e eu acabei indo. Comecei a participar de algumas agendas e a visitar outros grupos de catadores, convidando para um congresso que nós organizamos e que ocorreu em 2001, em Brasília, o primeiro Congresso Nacional dos Catadores. A Ascat só tinha três vagas no congresso e eu fui por ser muito tinhoso, para dar um descanso aos que ficaram trabalhando na cooperativa. Três dias depois, voltamos e tínhamos que levar o movimento que fundamos em Brasília para as outras cooperativas e também mostrar para a sociedade que esse movimento existia. Para isso, precisava de alguém que tivesse celular e eu era o único catador, a ter participado do evento, que tinha celular. E aí acabei ficando como coordenador do movimento por ter celular e comecei a atender telefonemas, me aperfeiçoar e entender sobre a organização. Fui negociando com a prefeitura para mostrar o grande exemplo de Porto Alegre nos anos 2000, que tinha organização de catadores, coletiva seletiva pública, materiais de boa qualidade, educação ambiental, equipamentos novos para o trabalho dos catadores. Esse exemplo precisava ser mostrado para outras cidades, outros estados e eu acabei sendo o catador que podia levar essa experiência. Comecei a organizar vários projetos, encontros estaduais, formações. Me tornei coordenador de formação do movimento. Nesse período, eu não sabia o português adequado, mas eu conseguia botar as ideias no papel. Como diria Paulo Freire, o importante da escrita é a comunicação. Se o outro entende o que tu escreve, tá bom. Estava dando o recado. E eu fazia isso muito bem. Eu escrevia muito bem, dava o recado sempre botei muita emoção e muito sentimento naquilo que eu escrevo. Por isso fui convidado pelo movimento para ser o coordenador nacional de informação. Foi algo muito legal, que acabou me fortalecendo.


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