Denilso Camargo: "Somos poeira de estrelas que encontrou uma maneira de se perpetuar"

Denilso Camargo: "Somos poeira de estrelas que encontrou uma maneira de se perpetuar"

Taís Teixeira

Denilso Camargo, doutor em Astrofísica pela Ufrgs

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Uma descoberta recente do doutor em Astrofísica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Denilso Camargo revelou a formação do primeiro sistema binário de aglomerados abertos velhos na Via Láctea, galáxia na qual está o planeta Terra. Para o Correio do Povo, o pesquisador explica o que são os aglomerados e fala da importância desse feito para a astronomia.

O que é um sistema binário de aglomerados estelares?

Atualmente, sabemos que a maioria das estrelas não nascem sozinhas, mas em grupos. Os grupos cujas estrelas permanecem gravitacionalmente ligadas são chamados de aglomerados estelares. Esses aglomerados estelares se formam pelo colapso de uma nuvem gigante de gás e poeira, que, ao colapsar, se fragmenta formando regiões de maior concentração (pacotes) de gás e poeira que continuam colapsando e originam as estrelas individuais. Como as estrelas que compõem um aglomerado têm sua origem na mesma nuvem embrionária, elas apresentam a mesma composição química inicial, mas diferem em massa e, essencialmente, é a massa que define a evolução de uma estrela. Estrelas massivas evoluem rapidamente e explodem, evento esse chamado de supernova. As explosões das estrelas massivas podem ser fatais para um aglomerado estelar em formação, visto que são eventos tão violentos que expulsam o gás e a poeira interrompendo a formação de estrelas. Além disso, a expulsão do material embrionário reduz drasticamente a gravidade (potencial gravitacional) do aglomerado em formação e muitas das suas estrelas escapam, especialmente as de menor massa. A maioria dos aglomerados estelares não sobrevivem a essa fase. A mortalidade infantil para os aglomerados estelares é superior a 90%.

Felizmente, nuvens gigantes ou complexos de nuvens podem dar origem a diversos aglomerados muito próximos um do outro e com idades semelhantes. A gravidade entre eles pode unir os mais próximos aumentando as chances de sobrevivência. Pode ocorrer que sobreviva um par de aglomerados que orbitam um ao outro, formando um sistema binário de aglomerados estelares gravitacionalmente ligados e que viajam juntos pela Via Láctea, a nossa galáxia. No entanto, eles não sobrevivem por muito tempo, a maioria deles se funde formando um único aglomerado estelar ou se dispersam sobrevivendo um independente do outro. Poucos sistemas binários sobrevivem ligados por mais de 25 milhões de anos, o que em escala astronômica é muito pouco tempo. Embora muito rara, existe a possibilidade de que um sistema binário de aglomerados se forme por captura durante um encontro próximo. Nesse caso, é bastante provável que eles tenham idades diferentes e que, no processo de captura, muitas estrelas de ambos os aglomerados sejam ejetadas, levando parte da energia do aglomerado. Se a perda de energia for suficiente, os dois aglomerados se juntam formando um sistema único, caso contrário, eles acabam se dispersando e continuam orbitando a galáxia de forma independente. Durante a aproximação dos dois aglomerados, as estrelas que escapam dos mesmos podem formar um rastro de estrelas (tidal streams, no inglês) indicando a trajetória seguida pelos aglomerados.

E sua descoberta, o que é?

Analisando o aglomerado estelar NGC1605 percebi na imagem registrada pelo telescópio espacial Wise da Nasa que esse sistema estelar apresenta uma distribuição estelar difusa aparentemente com dois núcleos. Usando dados dos telescópios 2MASS e Gaia, confirmei que na região existem dois aglomerados estelares muito próximos um do outro. Na verdade, eles estão na fase final de fusão, com grande parte de suas estrelas compartilhadas e outras tantas espalhadas em uma grande área no entorno dos aglomerados em fusão. Além disso, os dados do Gaia sugeriam a possibilidade de rastros de estrelas deixados pelos dois aglomerados estelares. Analisando os dados de uma região maior, a existência desses rastros foi confirmada e, adicionalmente, verifiquei a presença de algumas regiões com maior concentração de estrelas ao longo dessas estruturas que registram as trajetórias dos dois sistemas estelares. Uma análise mais profunda dessas concentrações de estrelas mostrou que elas pertenciam aos aglomerados em fusão e que foram arrancadas deles pela interação gravitacional mútua e pela interação com o disco da nossa Galáxia e com braço espiral de Perseus, que é onde esses objetos estão localizados. Inesperadamente, a análise dos dados sugere que esses pacotes de estrelas depositados nos rastros dos aglomerados estelares apresentam uma estrutura parecida com a dos dois objetos principais, ou seja, eles parecem ser aglomerados estelares.


Esse sistema tem um nome?

O nome do aglomerado estelar já conhecido foi mantido, de modo que os dois componentes do sistema binário foram denominados NGC1605a e NGC1605b. Os aglomerados estelares foram denominados Camargo 1110, 1111, 1112 e 1113, seguindo a nomenclatura dos aglomerados anteriormente descobertos.

Essa pesquisa pode ser considerada um avanço ou conquista?

É o primeiro sistema binário de aglomerados abertos velhos descoberto na Via Láctea. Além disso, foram detectados rastros compostos de estrelas arrancadas do par de aglomerados. Embora esses rastros estelares sejam comuns em objetos massivos, como galáxias anãs e aglomerados globulares localizados na região esférica da nossa galáxia, conhecida como halo, nos aglomerados abertos que povoam o disco da Via Láctea esses rastros são difíceis de serem detectados.

O que representam os aglomerados para os sistemas estelares e para o universo?

Os aglomerados estelares podem ser classificados em aglomerados globulares e aglomerados abertos. Os aglomerados globulares são constituídos de centenas de milhares de estrelas, podendo chegar a milhões. Graças à enorme gravidade, eles apresentam uma estrutura esférica. Foram os primeiros sistemas estelares a se formar na fase inicial de formação das galáxias em um universo ainda muito jovem com gás e poeira abundantes. Assim sendo, eles podem ser considerados verdadeiros fósseis “vivos” da formação de galáxias como a Via Láctea, nossa galáxia. Eles preservam a história de formação e evolução da Via Láctea. Alguns aglomerados globulares são núcleos de galáxias anãs canibalizadas pela nossa galáxia. Esses objetos têm uma distribuição aproximadamente esférica na Via Láctea, muitos deles povoando o halo galáctico. Recentemente descobrimos oito aglomerados globulares com idades entre 12,5 e 13,5 bilhões de anos. Os aglomerados abertos povoam o disco da nossa galáxia e continuam se formando até hoje. Como o gás e poeira são menos abundantes, os aglomerados abertos são bem menos massivos e, geralmente, apresentam formas irregulares. As estrelas desses objetos são ricas em elementos químicos mais pesados, já que têm sua origem em material enriquecido pelas gerações anteriores de estrelas. Os aglomerados abertos são mais abundantes na nossa galáxia. Já descobrimos mais de mil deles, muitos em fase inicial de formação. Em 2015, esses objetos nos permitiram afirmar que a Via Láctea é composta de quatro braços espirais e não dois como se pensava.

Nas últimas décadas, vários rastros de estrelas deixados por aglomerados globulares e galáxias anãs foram descobertos na nossa galáxia, mas essas estruturas são muito mais difíceis de serem detectadas no disco da Via Láctea, visto que também estamos no disco e a grande concentração de poeira atrapalha as observações. Esses rastros permitem estimar o potencial gravitacional da galáxia e detectar subestruturas como concentrações de matéria escura que são invisíveis nos telescópios. O artigo publicado mostra os rastros de estrelas deixados pelos dois aglomerados abertos e pela primeira vez mostrou-se que encontros próximos de alta energia entre aglomerados abertos podem deixar rastros de aglomerados abertos menos massivos, ou seja, os aglomerados estelares em interação podem ser quebrados em sistemas menores e isso representa uma mudança de paradigma no estudo dos processos que levam a fusão de aglomerados estelares. No processo de fusão, os dois objetos travam uma luta com movimentos em forma de dança, um no entorno do outro, se aproximando e se afastando diversas vezes e arrancando pedaços um do outro antes de se fundirem. Alternativamente, estrelas ejetadas individualmente poderiam estar se aglutinando para formar estruturas aparentemente ligadas no interior desses rastros. Adicionalmente, acredita-se que a fusão de aglomerados estelares leva a formação de sistemas mais massivos, mas esse trabalho sugere que os dois aglomerados perdem grande parte de suas estrelas e, por isso, novos estudos são necessários para verificar a veracidade de tal premissa, pelo menos no que se refere ao produto final da fusão de aglomerados estelares por meio de encontros próximos extremamente energéticos.

O que significa essa descoberta para a Ciência?

Essa é uma descoberta importante para a astronomia, cujas pesquisas acabam por desenvolver a Ciência como um todo. A astronomia amplia os nossos horizontes, mostrando a grandiosidade do universo e abrindo a discussão sobre o nosso papel nesse universo. Hoje sabemos que o nosso Sol, como qualquer outra estrela, tem um ciclo de vida e que vai se apagar um dia e, por isso, a humanidade precisa buscar outra morada para não desaparecer. É a astronomia que em última instância vai permitir que a nossa existência se prolongue, descobrindo outro astro habitável.

Mas se isso ainda não for suficiente para convencer a humanidade da importância da pesquisa astronômica, podemos lembrar que ela também gera impactos econômicos e de proteção da vida, visto que acelera o desenvolvimento tecnológico. As técnicas de tratamento de imagens desenvolvidas na astronomia são frequentemente utilizadas na indústria e principalmente na medicina. O desenvolvimento de sensores, detectores de radiação e coletores de energia frequentemente usam métodos desenvolvidos para a pesquisa astronômica. A comunicação é outra área favorecida pela pesquisa astronômica. Por exemplo, pouca gente sabe que o wireless foi desenvolvido baseado em um método usado para melhorar imagens de um radiotelescópio. Então, mesmo não tendo uma ligação direta com a indústria, a transferência de tecnologia faz com que o avanço da astronomia chegue a casa das pessoas, como ocorreu com o CCD das câmeras e TVs.

Quais são os próximos passos a partir disso?

Futuras simulações de computador podem nos ajudar a entender os processos físicos que levaram a formação do cenário atual na região do sistema binário de aglomerados estelares descoberto.

Tem algum impacto sobre a Terra, pode provocar alguma mudança a longo prazo?

A nova descoberta não tem impacto direto sobre a Terra. No entanto, há evidências de que o nosso Sol nasceu em um aglomerado estelar e posteriormente foi ejetado já com o nosso sistema planetário formado e, atualmente, viajamos pela nossa galáxia relativamente independentes. Por isso, é importante entendermos melhor as interações entre aglomerados estelares e suas consequências para as estrelas componentes desses sistemas. Os aglomerados estelares são as fontes das estrelas isoladas que povoam as galáxias. É importante lembrar que os elementos químicos que compõem o nosso corpo e o planeta Terra tiveram sua origem nas estrelas ou em eventos catastróficos que as envolvem. São as estrelas as fábricas da maioria dos elementos químicos, o Big Bang gerou apenas hidrogênio, hélio e lítio. Somos portanto, poeira de estrelas que encontrou uma maneira eficiente e interessante de se aglutinar e se perpetuar.


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