Nelson Hillcoat Correa, ex-piloto: "até hoje a gente sonha com a Varig"

Nelson Hillcoat Correa, ex-piloto: "até hoje a gente sonha com a Varig"

Eduardo Andrejew

Nelson Hillcoat Correa foi comandante da Varig ao longo de três décadas

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Nelson Hillcoat Correa, 79 anos, natural de Porto Alegre, foi comandante da Varig ao longo de três décadas, acompanhando uma das mais importantes companhias aéreas do Brasil. Quinze anos após o fim da empresa, ele fala ao Correio do Povo sobre os anos de glória da Varig e do que ela representava para a aviação civil no país e no mundo.

Como o senhor começou na Varig?

Bem, eu descendo de uma família de pilotos. Meu avô era piloto na Aerolíneas Argentina e naturalmente isso tem uma influência. Então, fui para o Aeroclube de São Leopoldo, que era como se entrava na aviação e como até hoje se entra, se vai para essas escolas. Eu me formei como piloto privado e, dois anos depois, a Varig fez um concurso para admissão de pilotos. Passei no concurso, fiz a Evaer (Escola Varig de Aeronáutica), que durava um ano na época. E depois, na linha, entrei voando um DC3, em 1966.

Imediatamente como piloto?

Copiloto. Voei dois anos de copiloto de DC3. Aí a Varig comprou os aviões ingleses, os Avro, nos quais fui voar de copiloto. Nesse avião fui promovido a comandante. Voei 11 anos no 737 e fui promovido para comandante internacional de 707. Já estava encerrando a carreira do 707 na Varig. Voei alguns anos e fui para os 767, que a Varig recém tinha comprado. Fui de novo para a fábrica, fiz o curso de 767. Voltei para o Brasil, voei mais alguns anos de 767 e fui promovido para o DC10. Voei alguns anos e fui promovido para o Boeing 747, o Jumbo, de onde depois me aposentei.

Quando o senhor se aposentou?

Me aposentei em 1997.

Começou e terminou na Varig sua carreira?

Eu tinha em paralelo à minha carreira de piloto uma carreira administrativa. Entrei para a Associação de Pilotos da Varig e participei do grupo da Ifalpa, a Federação Internacional de Associações de Pilotos de Linha Aérea. Lá adquiri alguma experiência e acabei sendo assistente de piloto-chefe no Rio de Janeiro. Dali fui promovido para superintendente de operações na base de São Paulo. Dois anos depois, fui diretor de operações de voo da Varig. Fiquei até 1996. Quando entrou o Fernando Pinto (presidente da Varig na época), voltei para a linha. Um ano depois completei 55 anos e fui convidado para montar uma empresa nos Estados Unidos. Fui para lá e fiquei dez anos voando. Fernando Pinto foi um excelente presidente. Quando ele assumiu, montou sua equipe. Naturalmente ficaram vagos alguns cargos, inclusive o meu. Aí eu voltei para a linha. Mas, com essa oferta de montar uma empresa e voar entre EUA e Inglaterra, preferi ir para lá e ficar dez anos voando.

Foram quantos anos de Varig?

Foram 31 anos. Uma história bastante intensa.

Como o senhor definiria a experiência de trabalhar em uma companhia da importância da Varig?

Olha, é incrível, sabe? Eu, ao longo desses anos, estudei bastante a história da Varig. A Varig foi fundada em 1927 e já tinha um sistema organizacional espetacular. Todos os funcionários ganhavam manuais que definiam suas funções. Havia um sistema de comunicação muito bem feito. Era uma empresa que a gente não entende como é que, criada naquele ano, tenha tido tal detalhe de organização. Era fantástica. E, claro, as empresas aéreas estavam sujeitas a uma série de efeitos externos: custo do petróleo, do dólar, essas coisas. Então, fui vendo que a Varig passava por grandes crises. Por exemplo, em 1974 passamos pela crise do petróleo. Muitos aviões tiveram que parar de voar porque gastavam muito. Tiveram que refazer várias rotas. Enfim, atingiu fortemente o mundo inteiro. Depois disso, em 1991, na época do Fernando Collor (presidente do Brasil entre 1990 e 1992), houve um movimento político para acabar com a Varig. O Collor queria que a Vasp se tornasse empresa de bandeira. Então houve a 5ª Conac, Conferência Nacional de Aviação Civil, que se realizou no Hotel Sheraton, do Rio de Janeiro, em 1991. Lá eles abriram os céus a todas as empresas, sem dar oportunidade para a Varig se readequar. A intenção era fazer com que a Vasp quebrasse a Varig e ficasse de empresa de bandeira.

E o que ocorreu?

Bem, o Collor foi deposto, o programa dele faliu. A Vasp em seguida faliu também porque não tinha mais suporte. Quando entrou o presidente Lula (Luiz Inácio Lula da Silva, presidente de 2003 a 2010), o então ministro da Casa Civil, José Dirceu, fez um acordo com a TAM para fazer a mesma coisa. Forçou a quebra da Varig para que a TAM fosse a empresa de bandeira. Para sorte da Varig, Dirceu foi demitido. Mas todos esses eventos machucaram fortemente a Varig. Foram épocas em que teve que fazer muita força, muita dívida. E hoje tem avião que paga manutenção em dólar, paga peça em dólar, o petróleo é em dólar e as receitas são mais ou menos em real. Então isso tudo acabou contribuindo para que a Varig enfraquecesse e fechasse anos depois.

Qual foi o sentimento do senhor ao ver o fim das operações da Varig?

Bom, eu tinha saído já havia dez anos, desde 1997, mas vinha acompanhando. E, claro, me criei na Varig, entrei jovem, criei meus filhos, minha família. Aprendi tudo o que sei de aviação lá dentro. Então, é um sentimento de tristeza, até hoje a gente sonha com ela.

Gostaria que o senhor explicasse qual importância do status empresa de bandeira.

Por exemplo, na Alemanha, a Lufthansa é uma empresa de bandeira. Na França, a Air France. Em alguns países são estatais e em outros não, mas são empresas que o governo usa como representatividade do país. Todo mundo conhecia a Varig pela sua representatividade. As agências da Varig, nos aeroportos do mundo inteiro, eram consideradas quase como uma extensão do consulado.

Na sua opinião, há empresas hoje no Brasil que chegam ao menos perto do padrão de qualidade da Varig?

Diria que internacionalmente existem muito poucas que chegam ao padrão Varig.

Internacionalmente?

Internacionalmente. Muito poucas, porque o mundo partiu para um sistema low cost (baixo custo) e os padrões caíram. O que a gente tinha na classe executiva e primeira classe da Varig não existe mais, poucas empresas têm. E mesmo para o passageiro comum, na classe turista, o serviço da Varig era muito bom. Hoje os caras só pensam em ganhar dinheiro, não estão preocupados. Mas algumas empresas, como a Emirates, a Qatar e a Lufthansa, ainda fazem força para manter certo padrão, mas aquilo não existe mais. Nem acredito que volte.

Não há mais espaço no mercado para uma empresa como foi a Varig?

Sabe que gente com dinheiro para pagar passagem tem bastante. Mas se criou um estigma sobre o passageiro de classe executiva, então ninguém quer se expor. Esse foi um dos fatores que contribuiu muito para acabar com a primeira classe e hoje todo mundo se refere como classe executiva, classe executiva first, mas primeira como era, não tem mais.

O senhor ainda pilota aeronaves, mesmo que eventualmente?

Não, não. Anos atrás, quando voltei dos EUA, fui coordenar instrução de voo no aeroclube aqui em Porto Alegre e fiquei lá uns anos. Mas há quatro anos eu cheguei à conclusão de que estava na hora de parar.

Como o senhor vê a situação dos ex-colegas? Sentem-se valorizados, valeu ter trabalhado na Varig?

Acredito que sim. Todo mundo sentia muito orgulho de trabalhar na Varig. A gente era uma megafamília, éramos cerca de 1,5 mil pilotos. Todos se conheciam pelo nome. A gente entrava nos aeroportos, éramos reconhecidos por funcionários, segurança, pelo nome. Era uma família. Hoje você passa no aeroporto e ninguém sabe quem você é. Tem que exibir crachá e identidade. A gente se encontrava com todos os colegas nos aeroportos, batia papo, se revia. Era um sentimento enorme de família. Todos, eu acho, têm o sentimento de perda. Mas acabou.


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