O trabalho se reinventa

O trabalho se reinventa

Simone Schmitt

Professora da área de RH, Carmem Castro

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O trabalho temporário chegou para ficar e cresce. Ainda que neste ano atípico de pandemia as intenções de contratação para o final do ano tenham diminuído, no cômputo geral a modalidade ganha espaço no mercado. Professora da área de RH e coordenadora do Núcleo de Práticas em Negócios da Fadergs, Carmem Castro, que também é especialista na consultoria de carreiras, fala sobre as mudanças nas relações profissionais. "Durante muito tempo , se falou em empregabilidade e hoje a saída está na ‘trabalhabilidade’, que é fazer uso de suas habilidades e competências para convertê-las em renda, serviços e diferenciais", defende. As funções de freelancer e consultor e o desenvolvimento de projetos para vários clientes ao mesmo tempo entram na rotina.

A Asserttem, Associação Brasileira de Trabalho Temporário, registrou crescimento de 50% nessa modalidade de atuação. De janeiro a setembro, foram 1,5 milhão de trabalhadores no país, contra 1 milhão no mesmo intervalo de 2019. Qual a sua avaliação sobre essa alta? Mudanças nas regras trabalhistas impulsionaram esse movimento? Ou neste ano de crise da pandemia estaria pesando mais o medo do empresário de não poder manter pessoal efetivo?

A crise da pandemia, aliada à Reforma Trabalhista, acelerou e oportunizou, aqui no Brasil, um processo de transformação das relações de trabalho com a flexibilização de contratos. Acelerou, pois, em outros países, como os Estados Unidos, essa modalidade já é bastante praticada. Acredito, sim, que o medo do empresário com a incerteza do mercado tenha contribuído para esse rompimento de paradigma. Outras formas de contrato também tendem a crescer, como contratos temporários, trabalho parcial, estágio, terceirização, trabalho intermitente, trabalho freelancer ou eventual e trabalho autônomo. Essas mudanças nas relações e contratos de trabalho vêm para ficar. A tendência é que, cada vez mais, tenhamos mais trabalho e menos emprego. Mas esse movimento também gera oportunidades, pois é possível encontrar novas formas de ganhos financeiros.


Se analisarmos as contratações temporárias por outro ângulo, o de trabalho de final de ano, este Natal deverá ter menos profissionais em ação. Dados recentes do Sindilojas POA mostram que 24% dos lojistas ouvidos têm intenção de contratar temporários. No ano passado eram 37%. Ainda assim, 69% desses empresários têm intenção de efetivar. O comércio ainda é a grande ponte para uma atividade mais duradoura ou é possível apostar também em outros setores nessa época de festas? Indústria, restaurantes...

O comércio é, sim, uma grande ponte para uma atividade mais duradoura, pois é, para muitos, a oportunidade do primeiro emprego, a porta de entrada, o que é válido, inclusive, para a modalidade e-commerce. O setor de alimentação também cresceu e deve crescer mais ainda, fomentado pela modalidade delivery. Isso faz com que indústrias na área de alimentação e bebidas cresçam alinhadas. Outra possibilidade de trabalho que tem aumentado é o teleatendimento, que, assim como o comércio, também é uma oportunidade de entrada no mercado de trabalho. Além disso, a área da construção civil vive um bom momento e oportuniza novas contratações. Por fim, o setor de TI tem tido crescimentos recordes ao mesmo tempo em que se depara com uma escassez de profissionais qualificados. Cabe destacar que, mesmo em setores tradicionais, que nesse período têm aumento no número de vagas, é importante perceber que essa oferta que aparece na intenção de contratar e efetivar se dará de diferentes formas, se comparada com a oferta tradicional até 2019, o que exigirá adaptações e novas competências dos profissionais para atuar de forma mais autônoma, mediados por tecnologia, em espaços como o home office.

É possível perceber que o emprego tradicional e formal vai perdendo espaço. Aquela carreira que começava como auxiliar e encerrava como técnico, analista ou diretor na mesma empresa décadas depois se torna raridade. O empresário também precisa se adaptar a isso, já que aquele "braço direito" que estava com ele 15, 20 anos é substituído por alguém que estará ali por alguns meses. Quais arestas terão que ser aparadas?

É uma transformação nas relações de trabalho que vai exigir uma mudança de perfil e mentalidade na forma de gerir uma empresa. O sistema de cargos está fadado a deixar de existir, e essa já é uma mudança real em muitas empresas no mundo, conforme constata o autor Frederic Laloux em seu livro "Reinventando as Organizações". Para o empresário, há a necessidade de estabelecer relações de parceria, de cooperação e colaboração, de comunidade com seus funcionários e de compartilhar o sentimento de dono do negócio com seus colaboradores. As pessoas terão de se conectar por propósito e não mais por vínculos, por salários. Primeiro, entendo que empresários terão de passar por uma transformação interior, reinventar a sua forma de gerir e de fazer negócios. O parceiro de 15, 20 anos possivelmente terá um prazo de duração menor. Da mesma forma, é possível que ele seja parceiro de mais de um empresário ao mesmo tempo. Com certeza, nessa nova forma de encarar a carreira, háuma durabilidade, um prazo de validade. Negócios começam e terminam e parcerias de exclusividade também. Novos métodos de gestão precisarão ser estabelecidos e, com isso, um novo modelo organizacional surge, prometendo uma revolução significativa no local de trabalho, bem como nas relações. Não será mais só o funcionário que deverá ter plano A, B e C, todos terão. Todos terão de estar atentos às novas possibilidades de negócios e de atuação.

E para o empregado, como se adaptar a essa realidade? Que dicas a senhora daria aos mais jovens, que possivelmente vão iniciar a vida profissional mais voltados a esse cenário de funções temporárias?

Acredito que a primeira coisa que precisamos é mudar a forma de ver o trabalho, não mais como emprego, mas como trabalho em si. Durante muito tempo se falou em empregabilidade e hoje a saída está na “trabalhabilidade”, que é fazer uso de suas habilidades e competências para convertê-las em renda, serviços e diferenciais de mercado. A “trabalhabilidade” permite encontrar oportunidade para além do emprego fixo de carteira assinada. Para tanto, é importante para quem está iniciando a sua carreira, primeiro invista em conhecer as suas habilidades e competências, no que é bom, o que sabe fazer bem e que pode ser convertido em trabalho. Também, hoje há muitas formas de se capacitar sem sair de casa e de forma gratuita. Milhares de cursos com certificado circulam pela Internet todos os dias, além dos perfis em redes sociais e de canais com vídeos. O segredo está na preparação, que não precisa mais seguir o modelo tradicional. Além disso, é importante estar atento às novas competências exigidas pelo mercado de trabalho. Todos os anos, a ONU divulga as dez principais competências do futuro para o ano seguinte. Flexibilidade cognitiva, negociação, orientação para servir, inteligência emocional, criatividade e pensamento crítico estão entre elas. Então, será necessário autonomia nessa busca de desenvolvimento pessoal e profissional. Estude sobre essas competências, busque conhecer, busque cursos para se desenvolver nelas. E por fim, mas não menos importante, esteja preparado para um mercado de trabalho e para relações de trabalho diferentes daquelas que seus pais tiveram. As oportunidades não estão mais só no emprego, estão e estarão principalmente nas mais diferentes formas de vínculo. Além disso, invista no seu currículo, no seu LinkedIn, em network, participe de grupos de vagas e de discussão na sua área de interesse.

Pela sua experiência de consultoria em RH, quais pontos devem ser mais observados pelo profissional temporário? Que diferenciais farão com que ele se destaque para conseguir uma vaga permanente?

Para conseguir uma vaga permanente será importante a mudança de mentalidade. O profissional irá precisar se diferenciar e se qualificar. Compreender e acompanhar as transformações do trabalho, estar atento às oportunidades que talvez, inicialmente, não venham por um emprego, mas por um trabalho que será oportunidade de adquirir experiência, de desenvolver habilidades. A mesma dica que dou para os jovens vale aqui. Invista em redes sociais que possam projetar seu trabalho, tenha uma página profissional, participe de grupos na sua área e, além disso, invista em busca de sites especializados em trabalhos freelancer ou remoto, participe de cooperativas de trabalho, invista muito em network e na sua marca pessoal, pois ela será seu cartão de visitas. Mapear as próprias habilidades e procurar por autoconhecimento e inteligência emocional são chaves para tempos de incerteza.

É possível se tornar alguém especialista em trabalhar de forma temporária?

Será preciso ter múltiplas carreiras. O conceito de multicarreira ou de carreira em portfólio vem crescendo no Brasil e já é um fenômeno nos Estados Unidos. Oportuniza um acelerado desenvolvimento, além de aumentar a empregabilidade e as oportunidades de ganhos. É preciso mudar a forma de ver a atuação em várias frentes como "bico", afinal o plano B pode, sim, virar plano A. Para tanto, o importante é encontrar interesses em comum entre essas diferentes frentes de atuação. O trabalho é e sempre será um espaço de realização pessoal e de fonte de renda e, para tanto, é preciso paixão pelo que se faz. Para sobreviver será necessário primeiramente o autogerenciamento. Buscar trabalho dá trabalho. Por outro lado, sim, é possível ser especialista em trabalhar de forma temporária, muitos profissionais atuam dessa forma já como freelancer, como consultor, atuando na forma de projeto. O brasileiro tem como características inerentes a criatividade, a determinação e a coragem. Tais competências somadas podem gerar satisfação pessoal e profissional.


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