Djamila Ribeiro: Voz contra o racismo

Djamila Ribeiro: Voz contra o racismo

Carlos Corrêa

Além de pesquisadora e mestre em Filosofia, Ribeiro escreveu o livro "Pequeno Manual Antirracista”, de 2019

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Pesquisadora e mestre em Filosofia Política pela Universidade Federal de São Paulo, Djamila Ribeiro tornou-se recentemente uma voz cada vez mais frequente nas discussões sobre o racismo. Uma de suas obras mais recentes, "Pequeno Manual Antirracista”, de 2019, alcançou o topo da lista dos livros mais vendidos no país, um feito e tanto em se tratando de um livro de não ficção com um tema ainda tão estigmatizado no Brasil.

Nesta conversa com o Correio do Povo, a também ativista fala, entre outros temas, sobre o sucesso do livro, as dificuldades surgidas a partir do crescimento das mensagens de ódio nas redes sociais e sobre as cobranças surgidas dentro dos próprios movimentos negro e feminista.

Correio do Povo: Este ano, o "Pequeno Manual Antirracista" alcançou o primeiro lugar na categoria não ficção. Qual a simbologia de um livro sobre racismo, de uma autora negra, estar entre os mais vendidos no país?

Djamila Ribeiro: Acho que apesar de um momento muito difícil no Brasil, nenhuma totalidade é homogênea. Acho que isso é um movimento que sempre existiu. Hoje, no Brasil, talvez as pessoas estejam mais conscientes da importância desse debate como central, e não secundário, como foi colocado historicamente.

Ao mesmo tempo, é reflexo desses movimentos históricos. Nunca se falou tanto sobre essas questões, é preciso estudar sobre o tema, as próprias pessoas brancas estão entendendo esse lugar no debate.

CP: A senhora acredita que o livro tem sido mais procurado por leitores negros, habituados à discussão sobre racismo, ou leitores brancos, interessados em como se colocar no debate?

DR: As duas coisas. Como é muito didático e minha intenção foi escrever de uma forma que saísse da bolha, está sendo muito utilizado em escolas. Acho que, de maneira geral, tem sido procurado tanto por quem nunca teve contato com o tema, como por quem já tinha, mas utiliza nos seus trabalhos, para lecionar, ou mesmo por empresas que montam comitês de diversidade. Como tem essa proposta didática, fico feliz de cumprir esse objetivo de utilizar em sala de aula, em faculdade.

CP: Quando o movimento Vidas Negras Importam tomou as ruas nos EUA no meio do ano, muita gente pensou se tratar de algo novo, quando na verdade existe há anos. Por que é tão difícil manter essa visibilidade?

DR: As pessoas esquecem a perspectiva histórica, ainda mais quem despertou agora e não acompanhava o debate. No Brasil, é um movimento que segue e que começou desde os quilombos, depois com a Frente Negra Brasileira, o Movimento Negro Organizado e tantas outras organizações negras que foram criadas. É muito importante não perder esse contexto, é preciso referências.

Hoje, tem muito essa cultura de rede social, em que se publica hoje e amanhã já não é mais importante, uma visão muito líquida. Nós, como ativistas, temos a obrigação ética de lembrar os caminhos percorridos, para saber como chegamos aqui. Por isso que fiz questão de colocar no meu livro referências de ativistas e intelectuais mais velhos, o que essas pessoas fizeram antes. É preciso conhecer essas pessoas.

CP: Ao assistir ao noticiário, a senhora fica mais esperançosa ou pessimista em relação à luta contra o racismo?

DR: Como uma pessoa que nasceu em uma família de ativistas, sei que o racismo é um problema estrutural e que não se muda uma realidade de século em poucos anos. É preciso nunca esquecer a perspectiva histórica, penso nos meus ancestrais que foram escravizados, que fizeram os quilombos. Não vai ser fácil, é uma luta de formiguinha, talvez a nossa geração não veja, mas as próximas sim.

Não podemos perder esse movimento. É um problema secular, extremamente enraizado na sociedade. Não podemos nunca perder isso de vista, talvez uma geração não vá ver o resultado de uma luta, mas outra sim. Senão ficamos pessimistas. Mesmo nos EUA, com toda essa movimentação que vimos, continuam assassinando homens negros pelas costas. A gente precisa continuar.

CP: As mídias sociais deram voz para muito mais gente. Era de se imaginar que a luta contra o racismo ficasse mais evidente. No entanto, o que se vê são muitos casos de racismo por ali. No contexto desta luta, qual o papel dessas tecnologias?

DR: Da mesma forma que deu voz a pessoas que não tinham ou que não eram escutadas, também amplificou a voz dessas pessoas reacionárias que sempre existiram, mas que agora tiveram suas vozes amplificadas. A diferença é que hoje, e mesmo entendendo que Internet não chega a todos e que ainda existem monopólios, pessoas negras passaram também a falar e terem suas vozes amplificadas. Agora, o outro lado sempre esteve lá, em posições de poder ou não, muitos se escondem em perfis falsos, agem em grupos coordenados, tentam deslegitimar quem fala contra. Mas isso é reflexo desse incômodo com essas vozes que não eram escutadas.

Eu mesmo fiquei conhecida por causa da Internet. As críticas são resposta por termos saído dos nossos lugares. Mas também é preciso discutir a responsabilidade das redes sociais. Entramos há pouco com uma representação contra o Twitter por permitirem que certos discursos circulem lá sem que haja qualquer filtro. As redes sociais lucram com isso, esses discursos geram visualização, anunciantes. É preciso ter algum tipo de regulação, de responsabilizar essas redes, para que certas coisas criminosas não corram livremente.

CP: A senhora atingiu posição de destaque na luta contra o racismo. O que, paradoxalmente, a coloca em uma posição em que qualquer eventual deslize toma proporção maior. Isso valeria de qualquer forma ou acha que é assim por ser mulher e negra?

Ah sim, tem muito mais perseguição. Em uma sociedade como a nossa, as mulheres negras sempre estiveram em determinados lugares e muita gente se incomoda quando saímos desse lugar. Essa agressividade, esse deboche é uma maneira de dizer “volte para o seu lugar”.

Mas isso não me abala, não deixo de falar o que penso por causa disso, não deixo de me posicionar. Sei que certos posicionamentos vão gerar incômodos, sei que o mecanismo é esse. Sei que punem mulheres que ousam falar de temas que são desagradáveis. Aí, invertem lógica e nos colocam como as agressivas. A gente sabe que estar no nosso lugar é assumir uma posição incômoda. E de fato a reação vai ser mais violenta e agressiva por não sermos os sujeitos que sempre ocuparam esses lugares. Não só as partes conservadoras, mas também muitas progressistas.

CP: Existe muita cobrança dentro dos próprios movimentos progressistas?

DR: Existe. Às vezes, muito movimentos de esquerda ainda têm apenas homens brancos em espaços de poder, feministas negras historicamente criticam isso. Há um incômodo. Não estou ligada a nenhum partido, sou uma pesquisadora independente, ter chegado aqui sem ser tutelada gera incômodo para parte desses movimentos, por não ser filiada ao pensamento hegemônico desse espaço e ser crítica a isso.

O incômodo é maior por não ter nenhuma tutela. Ser independente desse movimento custa porque também há disputa dentro deles e obviamente que há reprodução de opressão. Homens brancos ainda se incomodam com mulheres negras que chegaram a alguns espaços. Venho de uma tradição de feministas negras que não aceitam, refutam e afirmam que para ser progressista de fato tem que ter múltiplas vozes e que temos que participar ativamente e não apenas para uso político, como muitas vezes é feito.

CP: Uma das suas obras é "Quem tem medo do feminismo negro?". O feminismo negro encontra mais dificuldades?

DR: Sem dúvida. As feministas negras que me antecederam fizeram muitas críticas, visto que foi universalizada uma ideia de feminismo a partir da experiência da mulher branca. Mas há vários tipos de mulheres. Muita gente criticou isso e é uma crítica que também se estende ao movimento negro. Se você não é homem e nem branco, onde fica?

Uma crítica que se faz é que muitas vezes a esquerda resume tudo a uma luta de classe, sendo que sempre foi de classe e gênero. Essas feministas foram contundentes ao criticar que, ao falar quem seria representado, sempre se deixava de fora uma série de outros sujeitos não contemplados. Nunca foi a mesma coisa para um homem branco trabalhador e para uma mulher negra trabalhadora, por exemplo. E isso não vale só para o movimento negro, mas para tudo.

CP: Assim como exalta autoras como Conceição Evaristo e Chimamanda Ngozi Adichie, a senhora tem sido muito citada pela nova geração. Como é o diálogo?

DR: Recebo muita marcação nas redes sociais. Fico muito feliz com educadoras lendo minhas obras, com grupos de leituras. Fico muito grata, já tenho quase 900 citações no Google Acadêmico somente sobre “Lugar de Fala”. Fico feliz de receber esse retorno, de os livros estarem presentes na academia, mas, para além disso, nas escolas de base, nos coletivos de periferia, em diversas regiões do Brasil. Me deixa muito feliz o fato de estar na academia, mas também de ter rompido com esse muro e mostrar que conhecimento não é para um grupo seleto de pessoas. 

CP: Símbolos são muito importantes. Assim, qual foi o peso da morte prematura do ator Chadwick Boseman, que interpretava o Pantera Negra nos cinemas?

DR: Esse filme foi muito importante no sentido de representação. É um filme que, por mais que esteja dentro dessa estrutura comercial, produziu imagens que são muito ponderosas. Não só o personagem dele, mas também a irmã mais nova, que é superinteligente, também todas aquelas guerreiras. Têm ali pessoas negras que não estão interpretando o papel do escravizado, do bandido, aqueles estereótipos de sempre. O próprio Boseman falou que seus primeiros papéis eram esses.

E o Pantera Negra é um filme poderoso nesse sentido. Ele como ator sempre foi crítico e, depois do sucesso do filme, só trabalhou em filmes nos quais pelo menos metade da equipe fossem negros. Ele representa para a gente toda uma possibilidade de existências e sonhos.


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