Demanda por uso da realidade virtual na medicina deve crescer após a pandemia

Demanda por uso da realidade virtual na medicina deve crescer após a pandemia

Previsão é do especialista Anderson Maciel, professor associado no Instituto de Informática da Ufrgs

Luciamem Winck

Anderson Maciel é professor associado na Ufrgs

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A demanda por uso da realidade virtual na Medicina deverá crescer após a pandemia. A previsão é do especialista Anderson Maciel, professor associado no Instituto de Informática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), onde ministra aulas de Interação Humano-Computador e Animação Interativa e Simulação Gráfica por Computador. Também coordena pesquisa na área de computação visual vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Computação, atuando principalmente nas áreas de computação gráfica, realidade virtual, simulação cirúrgica por computador, simulação interativa baseada em Física, interação humanocomputador e visualização imersiva. É membro da Association for Computing Machinery (ACM), do Instituto de Engenheiros Eletricistas e Eletrônicos (IEEE), do IEEE Computer Society Technical Committee on Visualization and Graphics, do IEEE Haptics Technical Committee e da Sociedade Brasileira de Computação (SBC). Na sua avaliação, com este recurso tecnológico, os médicos poderão realizar exames clínicos à distância e analisar tomografias em 3D, por exemplo.

Como a pesquisa científica e a inovação estão ajudando a combater o novo coronavírus no Brasil e no mundo?

Um evento como este, que atinge a todos, provocou uma grande reação positiva, embora desorganizada, em toda a comunidade científica e de inovação. Tem muitos aspectos. Na minha especialidade, por exemplo, posso citar os sistemas de bioinformática para lidar com o código do vírus, sistemas de coleta e visualização de dados epidemiológicos, sistemas para trabalho, ensino e entretenimento a distância. Milhares de sistemas de visualização surgiram para acompanhar os dados da progressão da doença, tornando dados do mundo inteiro acessíveis a todos. Esses mesmos dados são usados pelos sistemas de saúde para definir dinamicamente as medidas de controle da doença e apoiar as decisões de governos. Há agora sistemas inteligentes para alocar leitos em hospitais. Os sistemas de videochamada, já amplamente difundidos, tiveram uma explosão na demanda e estão tendo que evoluir na sua interface para se tornarem amigáveis a todo esse público mais heterogêneo de novos usuários. Mas muito do que está sendo pesquisado agora, levará um tempo até estar disponível, assim como uma vacina. Uma área em que o potencial é grande é a de sistemas de telessaúde, teleconsulta, consultório virtual, telecirurgia, etc. Nessa área, as novas interfaces colocarão um profissional de saúde acessível a todos à distância num futuro próximo.

A pandemia provocou a necessidade de mudanças em muitos aspectos regulatórios, como no Brasil com o uso da telemedicina. As regulações provavelmente serão revistas? O que é preciso mudar?

Esta é uma questão mais de interesse político, no bom sentido, do que de ciência e tecnologia. As mudanças regulatórias que afetam uma ou mais classes profissionais geralmente enfrentam resistência, principalmente porque são vistas como ameaça pelos profissionais. Muitos médicos temem ser prejudicados por não conseguirem se adaptar a uma nova realidade diferente do que hoje é feito por meio de visitas ao consultório. Surgem alegações de precarização e de risco de fraude. Mas, observo que a telemedicina traria benefícios a todos, proporcionando o menor risco de contaminação, menos necessidade de deslocamentos e outros custos associados, mais oportunidades para as pessoas cuidarem da saúde, coleta mais regular de informações de saúde pelos sistemas de saúde pública, etc. Os pacientes em geral já usam os meios digitais para questões de atendimento de saúde, seja em mensagens e fotos pelo WhatsApp diretamente para o médico, por videochamada, ou para consultar os resultados de seus exames. Claro, que alguns pacientes também resistem à mudança e vão preferir, por um tempo, continuar visitando o médico presencialmente. Mas, não vejo a telemedicina substituindo todo contato presencial, há espaço para todos. Temos Netflix, mas ao contrário do que se previa quando surgiu a TV, os cinemas ainda não deixaram de existir.

Na pandemia, muitas famílias tiveram sua primeira consulta médica virtual e tendem a incorporá-la. O que se espera desse mercado no futuro? Já temos números de atendimentos no Brasil?

A pandemia é um fato novo que tende a acelerar a adoção de novas tecnologias que normalmente demorariam vários anos para acontecer. Algumas pessoas estão fazendo suas primeiras compras de supermercado e farmácia online, e estão tendo sua primeira experiência de ensino à distância. A necessidade remove barreiras. Da mesma forma, o atendimento de saúde à distância foi precipitado pela necessidade. Porém, não há ainda regulamentação e nem ferramentas (software e dispositivos) adequadas à disposição atualmente, portanto, fica difícil saber o número de atendimentos já realizados no Brasil. Sabemos que muita gente continua suas sessões no psicólogo e no psiquiatra por videochamada, muitos estão mandando fotos de manchas na pele para seus dermatologistas e sei que o número de atendimentos em postos e em consultórios caiu muito nos últimos meses. Mas como fazer uma consulta ao oftalmologista sem um sistema pensado para isso? Como medir sinais vitais? Creio que há uma oportunidade agora para o desenvolvimento dessas ferramentas inovadoras que possibilitarão um maior acesso a todo tipo de atendimento num futuro próximo.

De um lado, o paciente entra em um ambiente especial e coloca sensores vestíveis no corpo. Do outro lado, o médico usa óculos ou headset de realidade virtual e ausculta o seu coração e os seus pulmões, mede sua pressão arterial, examina os ouvidos e as amígdalas. Essa cena tende a repetir várias vezes nos próximos anos com o crescimento da aplicação da realidade virtual na Medicina após a pandemia?

Este não será o cenário usual num futuro próximo, mas no médio prazo sim. Embora a tecnologia de realidade virtual já permita essa copresença remota, os periféricos necessários para um exame clínico compatível com o cenário presencial ainda são limitados. Já há termômetros clínicos, balanças, medidores de pressão arterial e frequência cardíaca que se conectam aos computadores via bluetooth, por exemplo, e há webcams. Mas, quantos de nós temos um otoscópio ou um estetoscópio digital em casa? Todo um novo ecossistema para disseminar esse tipo de acessório precisa ser criado na indústria, incentivado pelos planos de saúde e ser suportado por novos marcos regulatórios. Pode-se imaginar também que num primeiro momento esse cenário se aplique mais a um paciente que vai a uma farmácia ou centro de saúde local onde este equipamento está disponível para consultar com um especialista de outra cidade, estado ou país.

Com o isolamento social, o serviço de teleconsultas disparou, diminuindo as restrições de médicos e pacientes a essa modalidade. A realidade virtual deve incrementar a telemedicina?

Não creio que a realidade virtual seja por si própria um fator de incentivo. O que naturalmente deve ocorrer é que, a partir de estudos clínicos que comprovem a eficácia maior das interfaces de realidade virtual com relação a outras plataformas, ela seja adotada preferencialmente. As interfaces de realidade virtual têm propriedades interessantes para aplicações de telepresença, que é o caso da telemedicina, que outras interfaces, como videochamada, não têm. O usuário de VR (realidade virtual) passa por um fenômeno de "esquecer que o que está vendo é virtual", o que faz com que o seu comportamento seja muito próximo do comportamento natural no mundo físico. Isso acontece porque as ações humanas corriqueiras, como o movimento de mexer a cabeça para olhar para pontos diferentes, uso natural das mãos para manipular objetos, entre outros, aumentam a sensação subjetiva de presença. A pessoa realmente se sente presente no outro local, que no caso pode ser o consultório médico, o que torna a experiência muito próxima da presença física.

A aplicação da realidade virtual na análise de tomografias pode contribuir para diagnósticos mais precisos e rápidos?

Esta aplicação é independente do contexto da telemedicina. Aqui, a motivação passa toda para o lado do profissional médico. Hoje, há exames de alta complexidade, como tomografias, tractografias e colonoscopias virtuais, que coletam grandes volumes de dados tridimensionais dos pacientes. Em alguns casos os dados são coletados ao longo do tempo e têm até 4 dimensões, em outros, os dados de dois exames precisam ser analisados em sinergia. Nesses casos, usar o procedimento convencional de ver projeções ou fatias das imagens em telas bidimencionais é um limitador importante. Uma interface imersiva, em realidade virtual onde esses dados podem ser explorados dentro da estrutura tridimensional equivalente a que tem o corpo humano, beneficia o processo de diagnóstico tanto na agilidade quanto na eficácia. Hoje, apenas algumas visualizações em projeção perspectiva no próprio monitor 2D são usadas em casos como múltiplas fraturas difíceis de identificar em fatias. Mas, nos laboratórios da universidade, em parceria com clínicas de radiologia, já identificamos que o uso de óculos de realidade virtual para visualização imersiva atinge taxas de acerto mais altas do que as interfaces convencionais para fraturas do crânio. É preciso agora que se avalie a efetividade de diagnóstico em VR para outros casos, como localização de tumores, planejamento de intervenções e até, possivelmente, para avaliar pulmões afetados pela Covid-19.

Algumas tendências tecnológicas já estavam sinalizadas antes da pandemia. Muita coisa mudou, seja nos negócios, no trabalho, na produção e inclusive como procurar serviços médicos. O que mudou e ainda mudará na Medicina?

O que mudou, como já mencionei, é que muita gente continou ou iniciou suas sessões de psicólogo e de psiquiatra por videochamada, muitos estão mandando fotos de manchas na pele para seus dermatologistas e sei que o número de atendimentos em postos e em consultórios caiu muito nos últimos meses. Agora, se tornou mais comum a televacina. O que vai mudar é o monitoramento da saúde antes de a doença acontecer, como sensores incorporados a celulares, relógios, óculos e outros artefatos vestíveis; podendo alguns serem instalados no corpo, sob a pele. O sujeito terá condição de monitorar em tempo real seu nível de glicose, risco de infarto, entre outros, e ter seu médico avisado automaticamente em caso de necessidade. Exames clínicos poderão ser feito à distância também, em sessões de teleconsulta, com o equipamento necessário para o médico olhar, auscultar, apalpar, sentir o paciente em realidade virtual. Há também mudanças tecnológicas nos tratamentos, como cirurgias robóticas e terapias genéticas.

A start-up chinesa WeDoctor consulta pacientes com suspeita de Covid-19 de todo o mundo em inglês e chinês, via WeChat. No Brasil, a telemedicina só foi permitida em caráter provisório na pandemia, mas tende a se impôr?

Em geral, o Brasil chega muito atrasado neste tipo de inovação. É uma questão estrutural: pouco investimento em pesquisa, legislação que desencoraja o empreendedor inovador e outros fatores. Como a eliminação da Covid-19 ainda deve demorar e estamos sujeitos a futuras epidemias, muitas atividades tendem a migrar para um modelo duplo, com possibilidades presenciais e possibilidades remotas. Creio que a rapidez com que nossa legislação se adaptará dependerá do tamanho do problema. Se as pessoas não tiverem uma real necessidade de usar a telemedicina, elas vão resistir. A migração ocorrerá apenas quando a nova geração de profissionais médicos, mais aberta como sempre é uma nova geração, estiver plenamente ativa.

Com a concentração enorme de médicos no Sul e Sudeste, já deveria ter sido adotada há muito tempo? Quais as vantagens?

Esta é uma hipótese bastante plausível. Em certas áreas da economia isso já aconteceu, e deve acontecer também com a telemedicina. Desenvolvedores de software, consultores e designers. podem morar onde quiserem, numa metrópole perto de tudo, na praia, no campo, e trabalhar a distância, não importa em que lugar do mundo estão seus clientes. Na medicina, uma área que já fez isso foi a radiologia. Hoje, há clínicas especializadas em fazer laudos de exames radiológicos que ficam aqui mesmo em Porto Alegre, mas recebem, via sistema de informática, exames de imagem de pacientes de todo o Brasil. Pelo mesmo sistema, submetem seus laudos. A vantagem para o médico é que ele escolhe onde quer viver e trabalhar, independentemente de ter pacientes por perto e da concorrência local. Os pacientes têm a vantagem de ter atendimento especializado, mesmo que habitem no interior do Brasil, a milhares de quilômetros dos grandes centros. Para o sistema de saúde como um todo, público ou privado, as vantagens são oferecer um melhor atendimento a menor custo e propiciar uma igualdade entre as regiões. Para a economia do país, um incentivo à descentralização dos negócios.

Recente relatório do World Economic Forum, "Schools of the Future", mostrou que o Brasil está muito atrasado e despreparado para competir no novo mundo que se desenha. A educação também deverá ser revista? O que precisa mudar?

Nós estamos bem abaixo disso. Há 30 anos que o brasileiro tem direito a escola gratuita para todos e o que foi feito? O professor não é valorizado, a infraestrutura é precária, a qualidade do ensino, portanto, é péssima. Quem puder deve pagar por escolas particulares. A população em geral não valoriza a qualidade da educação, embora todos queiram diploma. Felizmente, não é por falta de competência, temos profissionais excelentes na área de EaD. Aqui mesmo na Ufrgs temos o doutorado em Informática na Educação, com conceito 7 (nota máxima) da CAPES. Talvez a pressão causada pela epidemia no sistema educacional canalize a mudança na direção de adotar novas técnicas, faça a população aceitar mais a mudança e permita os profissionais oferecerem estratégias de ensino disruptivas.

O novo mundo pós-Covid vai obrigar a sociedade a repensar muitos dos atuais paradigmas e valores na vida empresarial, profissional e pessoal. Setores por completo serão transformados. O que deve mudar?

Nos setores mais ligados a empresas, produção e serviços, geralmente é a métrica do lucro que conduz. As pessoas vão rapidamente se dirigir para ações que deem mais resultado neste indicador. Mas, mesmo nesses setores, a mudança seria lenta não fosse o cataclisma da epidemia. Antes, que chefe permitiria o funcionário trabalhar em casa, sem supervisão? Poucos. Mas, quando foi necessário, e o lucro até aumentou em alguns casos, então algumas mentes foram se abrindo. Mas, a minha futurologia vai até aqui, difícil prever ubers e amazons antes que aconteçam.

A quarentena rompeu a barreira do home office. A pandemia vai acelerar mudanças que vinham acontecendo na dinâmica de trabalho, com espaços mais flexíveis e menos hierárquicos?

Observo que as nossas 24 horas reais se tornaram pelo menos 40 horas virtuais. Todos estamos trabalhando muito mais agora. Parece que as pessoas estão colaborando mais, conversando mais. Mas, não sei quanto tempo as pessoas aguentam neste ritmo. Estamos vivendo um tempo de muitas incertezas. Pela experiência passada, devem surgir ferramentas que facilitem esse tipo de trabalho com espaços e tempos flexíveis. Por enquanto estamos adaptando as velhas ferramentas, e nem todas são adequadas.

A geração coronavírus aprenderá cada vez mais com telas e com maior envolvimento das famílias em casa. O que poderá representar esta mudança para o futuro dessas crianças?

Tenho visto as crianças mais felizes neste período. Ter os pais em casa, principalmente para os menores, é o melhor estímulo. As telas são apenas mais um meio, como o lápis e o papel e como o livro. Daqui a pouco serão os óculos de realidade aumentada ou outra coisa que ainda não imaginamos. As crianças já vêm equipadas com a capacidade de absorver conhecimento e habilidades. Se a sociedade conseguir perceber a importância da atenção dada pela família para a formação emocional dos pequenos, estamos salvos. Um ponto delicado aí são as desigualdades. As famílias tem diferentes preparos e condições para propiciar esta atenção e esses estímulos. Mas isso já era assim antes.

A aviação pós-Covid-19 será para poucos, eminentemente doméstica. Até que surja uma vacina, voos internacionais serão raros. Se os atentados de 11 de setembro de 2001 trouxeram filas intermináveis com a obrigação de descalçar sapatos e abrir bagagens, agora os passageiros terão que lidar com medições de temperatura e máscaras. Aeroportos devem adotar tecnologias de higienização hospitalar e combater aglomerações, com marcações para espaçar as filas? Dentro do avião, comissários vestirão indumentárias de UTI?

Essas conjecturas podem não se concretizar. As pessoas não compreendem muito bem os números e as consequências da pandemia. Pode ser que não se importem de correr algum risco desde que possam curtir as férias. Não creio que os órgãos de regulação venham a impôr procedimentos muito severos que ponham em risco a viabilidade das empresas do setor. Assim que os países levantarem as restrições à viagem, as pessoas devem voltar a procurar seus bilhetes. Há iniciativas do lado da ciência e da inovação, no entanto, para mitigar os riscos, como configurações diferentes de assento com barreiras físicas, novos filtros de ar nas aeronaves, sensores para detectar presença de vírus. E há algumas ações que poderiam ser implantadas rapidamente, como uso obrigatório de máscaras, desinfecções regulares das aeronaves por UV, obrigatoriedade de um exame negativo recente para o SarsCov-2, por exemplo.

 


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