Luta pelo espaço da mulher

Luta pelo espaço da mulher

Neste ano, o foco dos Festejos é a celebração do centenário da Revolução de 1923. A senhora já pensou, ou está planejando, o que pretende abordar?

Felipe Faleiro

Maria Luiza Benitez

publicidade

A senhora tem uma carreira extensa junto ao nativismo e imagino que seja uma honra este convite para ser patrona dos Festejos Farroupilhas em 2023.

É motivo de orgulho e muito mais redobrado pelo fato de eu ter sido escolhida por unanimidade. Isso me orgulha muito mais. É sinal de que o pessoal tem um carinho muito grande e respeito por mim. Isso vale mais que tudo. E ser uma homenagem em vida ainda. Então, do alto dos meus 71 anos, me sinto realmente muito orgulhosa, embora já tenha recebido vários prêmios, como a Medalha do Mérito Farroupilha, entre outros. Este é muito importante porque trata realmente de uma caminhada no mundo do regionalismo, do nativismo, da cultura gaúcha. E para mim é tão importante porque tenho esta luta. Luto pelo espaço da mulher desde guria, desde que me conheço por gente, como locutora. Comecei a trabalhar em rádio em 1969 na Rádio Cultura em Bagé, sempre buscando meu espaço e mostrando que temos voz. Realmente estamos empoderadas. É uma felicidade muito grande para mim. 

Neste ano, o foco dos Festejos é a celebração do centenário da Revolução de 1923. A senhora já pensou, ou está planejando, o que pretende abordar?

Como historiadora, tenho alinhadas várias coisas aqui. Não sei ainda o que vai ser, na realidade, porque não tive reunião com o pessoal. Mas uma guerreira está sempre armada, no bom sentido. Estou pronta para tudo, para o que der e vier, uma palestra, alguma coisa assim. Faz algum tempo que não palestro, mas estou pronta. Achei interessantíssimo o tema da Revolução, porque, aos 50 anos de comemoração dela, quando o tema foi em torno das fraudes na eleição do Borges de Medeiros, e aí surgiu a luta dos chimangos e maragatos, foi feito um depoimento e um gesto grandioso de um chimango e de um maragato. Cada um se apresentou nessa comemoração, e juntos, com os lenços cruzados, os dois unidos, disseram: “Nós somos o Rio Grande do Sul”. Esta é a mensagem disto, dois que seriam inimigos e se tornaram amigos unidos pelo nosso Estado.

Conte um pouco de sua história. Como surgiu esta paixão pelo nativismo?

Canto desde os 4 anos de idade. Minhas duas primeiras mulheres inspiradoras não eram gaúchas. Eram a Vanja Orico, atriz de cinema que gravou um LP de músicas do Rio Grande do Sul, e Inezita Barroso, que gravou também, com orientação do Paixão Côrtes, um disco onde há “Negrinho do Pastoreio” e outros clássicos do nosso folclore. Eu ouvia aquilo e já tocava violão, inclusive imitando a Inezita até no sotaque. Era o que tínhamos de referências. Depois havia os Irmãos Bertussi, aquele pessoal dos programas de auditório que eu frequentava, o “Músicos da Terra”, extremamente regionalistas, e fui crescendo nesse meio. E também nos CTGs, mas não tão dedicada a eles porque sempre fui muito revolucionária em todas minhas atitudes, pensamentos e ideais. Em certa época, em que era jovem, e havia a Jovem Guarda, parti para outro tipo de música. Depois, em paralelo, vou para a faculdade de Direito em 1973 e param na minha casa amigos de Uruguaiana, Rosário do Sul, Alegrete, que eram alunos, colegas meus de faculdade. Os de Uruguaiana diziam que eu não iria na Califórnia (da Canção) de Uruguaiana e que lá só tinha uma mulher, a Oristela Alves, que é muito minha amiga. Mas diziam que iriam me preparar para ir. Chego nele em 1980, mas já cantava nos bares de Porto Alegre porque tinha uma amizade com Jayme Caetano Braun e Noel Guarany, meus padrinhos musicais. E tanto que enchi o saco deles, dizendo: “Quero meu espaço como mulher. Só têm vocês aí. Quero que vocês me coloquem no palco”. Eles disseram: “Nós vamos te apadrinhar”. E me convidaram para um show na Ufrgs. Foi minha primeira vez no palco com homens. Isso é muito bom, devo muito a eles por depois ter sido reconhecida pelo resto do Rio Grande do Sul.

Fale um pouco de suas composições, álbuns e gravações realizadas.

Meu material mesmo demorei muito para gravar. Gravei “Ouro Azul” (lançado em 2004), após o falecimento do Cenair Maicá, o cantor das águas. Me espelhava muito nele, que fazia parte dos Missioneiros, e aí resolvi fazer um disco voltado a este tema. O primeiro das águas e o seguinte (“Terra Gaúcha”) falando na terra.

Lancei este CD todo falando em canções que chamam a atenção para o cuidado com a natureza, especialmente pelo sangue da terra, que são os rios, na Assembleia Legislativa, com a presença dos índios Teko Guarani, liderados pelo cacique José Cirilo. Fui a primeira mulher a levá-los a um palco na Expointer, no governo (Germano) Rigotto. Foi a primeira vez que 28 indígenas subiram no palco. No lançamento do meu disco na Assembleia, em que, aliás, choveu muito, eles estavam lá, os integrantes da tribo e mais um Kariri-Xocó de Alagoas. Então, sempre me voltei para todas estas questões, a dos negros, sou casada com um negro, dos índios e das mulheres. Nunca deixei de abrir minha boca em lugar nenhum. Já vi (o contrário disto) com outras colegas, medo de perder show, de não serem convidadas para mais nada, eu sou muito antes pelo contrário. Não digo que sou solitária, hoje tem um pouquinho mais que avançam nesta empreitada, mas fiquei muito tempo gritando sozinha. Por gritar, abri portas, bati nelas, então por isso que com 71 anos eu continuo. E abomino qualquer separatismo, tanto os homens fazerem um festival ou encontro só deles, e também as mulheres que se reúnem para compor somente elas. Não, tem que dar as mãos e compor juntos, aí é que está a jogada. Tem que haver união, somos todos um. 

Há quem diga que a senhora é a “primeira-dama do Estado”. Depois, surgiram outras mulheres na música nativista. Como vê esta presença feminina hoje?

Acho importantíssima esta abertura toda e, principalmente, nos CTGs, aliás, dentro e fora deles. Mas nos CTGs temos patroas, não havia aceitação. Não são muitas, mas temos. Tivemos uma presidente do MTG, Gilda Galeazzi, então isto já é um balaço. Quem diria que uma mulher assumiria a presidência do Movimento Tradicionalista Gaúcho? E, para meu orgulho, estou incluída, além do Paixão Côrtes, Adair de Freitas, que foi no ano passado, Telmo de Lima Freitas, da dona Nilza Lessa, esposa de Barbosa Lessa, a historiadora Elma Sant’ana, Alessandra Motta e a primeira negra nomeada como patrona, Liliana Cardoso, que é minha “irmã”, considero como filha, já que a mãe dela tinha a mesma idade minha. Então acho bárbaro. Agora, realmente temos voz e temos que continuar tendo, pelo poder de decisão dentro da cultura e tradição. É só seguir o caminho sem desviar a rota, nem à esquerda nem à direita. É caminhar pra frente em uma mesma direção e ter mãos “dadíssimas” com nossos companheiros. 

A senhora tem uma trajetória virtuosa também na Rádio Guaíba, sendo, hoje, uma das principais locutoras do Estado. Como foi seu início na Comunicação e como se vê hoje?

Acho-me maravilhosa aqui nesta casa, é minha segunda casa. Aqui namorei, casei, tive filho, comprei meu apartamento, meu primeiro carro, meu primeiro som, tudo com o salário da Rádio Guaíba. Fiquei muito pouco tempo na Rádio Gaúcha. Vim para cá e estou até hoje. Vim porque, realmente, meu objetivo era trabalhar na Rádio Guaíba desde guria. Minha mãe me levava o café na cama e um radinho de pilha. Eu ficava ouvindo a Guaíba e pensava: “Um dia vou ser locutora desta rádio”. 


Mais Lidas

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895