Todos os homens da Ford

Todos os homens da Ford

A Ford vista por dentro

Renato Rossi

O presidente da Ford Jim Farley.

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A Ford saiu do Brasil sem explicações. Simplesmente fez a mala e foi embora. Com certeza não poderia expor a incompetência em achar bons gestores para a operação brasileira. Somaram a decisão de sair os problemas que a “matriz” em Detroit enfrenta. O principal é o “rastro” de maus projetos e negócios perpetrados por Jim Hackett, o penúltimo Presidente Global que ficou no cargo de 2017 a 2020. A Ford pensou que um executivo da indústria de móveis para escritório a “Steel Case” serviria à complexidade de uma indústria automobilística. Que carrega uma tradição centenária. Afinal foi Henry Ford quem inventou em 1920 a linha de montagem. No imaginário dos Estados Unidos da América, Ford inventou o automóvel. Os executivos da Ford sabem que não é fácil conviver com esta tradição, tampouco com a poderosa "Família Ford” que detém mais de 40% do capital da companhia. Na longa trajetória foram produzidos pela Ford alguns “ícones”, veículos de grande qualidade e difusão. À frente de todos o “mitológico Mustang” que foi lançado em 17 de abril de 1964, teve 400 mil unidades comercializadas no primeiro ano. O Mustang aproximou o conceito do “carro esportivo” à classe média norte-americana. Que não poderia comprar nos anos 60 os poderosos e caríssimos carros esportivos europeus.

No clássico filme policial Bullit de 1968 o Mustang foi imortalizado na longa sequência de perseguição que mostra Mustang GT do policial “Bullit”, interpretado pelo também mitológico ator Steve McQueen na perseguição implacável ao Dodge Charger pilotado por um “mafioso”. No final da “caçada” o Dodge Charger “perde” a curva se espatifa e explode. Nos bastidores a Ford tinha pago muitos milhões de dólares aos produtores de Bullit para que destruíssem a reputação do Charger. O filme forjou uma imagem de superioridade da Ford que, para os norte-americanos, persiste. Mas foram muitos os êxitos da Ford, como foram diversificados os erros da Companhia.

Em 2000 assumiu a presidência mundial da Ford o executivo Jack Nasser, O "Jack The Knife” ou “Jack Faca” que como executivo da área de compras pressionou os fornecedores a cortarem preços. O que levou centenas de empresas fornecedoras da Ford à falência. Mas Nasser economizou bilhões de dólares com seus cortes autoritários de custos e ganhou moral junto à poderosa família Ford e virou presidente. Numa noite num jantar da Ford em Detroit lá estava aquele homem baixo com cara de árabe, com um enorme charuto na boca. Naquele momento pela arrogância parecia ter o mundo a “seus pés”. Um ano depois de sucessivos choques com a família Ford, Nasser perdeu o emprego. Ele comprara uma rede de revendas de autopeças na Inglaterra que gerou prejuízo bilionário à Ford. Foi a gota d‘água num balde cheio de conflitos. Então a família Ford apontou para Nasser “a porta da rua”.

Numa empresa onde é a “Família Ford” os “estrangeiros” nunca tiveram vida fácil. Mas Alan Mullaly quebrou as resistências da família e virou presidente. Mas Mullaly tinha um currículo respeitável. Ex-presidente da Boeing onde lançou o ultra bem sucedido 777, entrou na Ford com salário anual de mais de 200 milhões de dólares em setembro de 2006. A beira da falência a Ford precisava de algo próximo a um milagre para se salvar. Mullaly imediatamente colocou em ação seu plano de “One World One Ford”. Um só mundo, uma só Ford, a frase de impacto que mudou o destino da Ford. Primeiro passo: vender as marcas icônicas, Land Rover, Jaguar e Volvo que formavam o elitizado Premier Automotive Group. Mas davam prejuízo. Cercados de marketing glamuroso, os lindos Jaguar, os aventureiros Land Rover e os sólidos Volvo, vendiam bem mas eram problemáticos. Assolada por dívidas, a Ford simplesmente negligenciou a qualidade de seus produtos. 

Um desastre que Mulally consertou ao vender as marcas elitizadas para chineses e indianos. Com os muitos milhões de dólares arrecadados a Ford amortizou sua imensa dívida e prosseguiu. O que veio a seguir é a trajetória bem sucedida de Alan Mulally que reposicionou a marca Ford numa expansão global com ótimos produtos. Vieram o SUV Explorer, o hatchback Focus, o belo e competente Fusion e mais um punhado de modelos bem sucedidos. Mulally saiu em 2014 e deixou saudades.

No final de 2014 a Ford coloca na presidência o jovem Mark Fields, nascido em 1961. Com carreira em grande parte na Ford Go, por um tempo supervisionou as operações no Brasil. Mark Fields era competente , mas tinha pinta de galã de Hollywood e um pendor para a vida glamorosa, o que gerou desconfianças na família Ford. Após ter sido responsabilizado por prejuízos bilionários, Ford perdeu o emprego em 2017. Mas para a imprensa deixou saudades. Era impressionante a acessibilidade e simpatia do jovem presidente que concedeu diversas entrevistas exclusivas a este repórter. Ficamos amigos ao menos nos Salões de Detroit onde a Ford sempre se apresentava de forma espetacular. Num Salão três Mustangs preparados e um Ford GT, roncavam sem parar. O público não reclamou, enlouqueceu. Depois de Fields em 2017 a Ford contrata Jim Hackett que se consagra à frente de uma empresa de grande porte que produz, até hoje, móveis para escritório, a Steel Case. Foi Bill Ford o poderoso líder nos bastidores da Ford, quem “bancou” a contratação de Hackett. Em três anos, de 2017 a 2020, Hackett levou a Ford a “lugar nenhum”. E gerou prejuízo de muitos bilhões de dólares. Prometeu levar a Ford rapidamente ao futuro dos carros elétricos e autônomos e fracassou. Depois cederia a vontade de Donald Trump e a Ford passou a ganhar bilhões somente na venda da enorme picape F150 na versão Raptor. Um exagero em alumínio dotada de poderosos motores V8 e V6 a Raptor é um negocio de 60 bilhões de dólares anualmente. Mas para azar da Ford, a F150 não se enquadra na “Era Biden” que não tolera nem o desmatamento da Amazônia, tampouco SUVs e picapes que poluem o meio ambiente. A Ford de forma apressada mostrou a Biden há poucas semanas atrás a versão elétrica da F150. Mas como Jim Hackett nada investiu em sustentabilidade a Ford está muito atrás na eletrificação do automóvel. A GM está muito à frente.

Também os protótipos de carros autônomos guiados pela inteligência artificial da “Era Hackett”, colidiram com postes e atropelaram pessoas. Um fracasso. Agora a Ford com novo Presidente Jim Farley, continua fechando fábricas pelo mundo. Mas fechou um contrato com a Google na semana passada. A Ford quer carros totalmente digitalizados e informatizados até 2023.Mas primeiro terá que produzi-los. Pode ser que com a ajuda do Google a Ford seja valiosa. Pode ser que Jim Farley, um competente engenheiro que também já ocupou diversos cargos na Ford, seja a solução. Talvez a família Ford tangida pelos recentes fracassos da marca interfira menos nas decisões do presidente. Talvez o competente Jim Farley tivesse impedido o fechamento da tecnológica unidade industrial de Camaçari. Eis um problema da Ford, tem um excesso de “talvez”.


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