Os cadernos perdidos

Os cadernos perdidos

Contou-me que nem precisou folhear para saber que eram os tais diários de Carmelinda Suárez y Ganaderya.

Paulo Mendes

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Muitos anos depois da morte de dona Carmelinda, a Linda, estive na Vila Rica e comentei com meu irmão, José Luiz, que ouvira falar sobre a provável existência de uns diários que a falecida mantinha em vida. Expliquei que a velha senhora era um verdadeiro patrimônio cultural do município e do Estado, tinha comandado estâncias e negócios rurais, feito muita coisa, além de ser uma figura enigmática. Que tinha curiosidade em desvendar a verdadeira história por trás daquele vulto. Ele ficou de averiguar a situação, mas, nos contatos seguintes, disse-me que ninguém sabia de nada, mas que, se surgissem novidades, imediatamente. me avisaria. Luiz é um incentivador dessas buscas por histórias interessantes que ficam escondidas nos confins do pago. Ocorre que a estância Rincão da Serra havia sido vendida e fora toda transformada em lavoura. No entanto, por um golpe de sorte, meu irmão fechou um negócio com um dos novos proprietários e, assim, teve acesso ao casario antigo que estava tapera havia muito tempo. 

Soube, então, que procura daqui, procura dali, numa parte do sótão da casa principal da Estância Rincão da Serra, que ainda estava de pé, Luiz achou uma pequena maleta de madeira, onde entre outras coisas pessoais, como cartas em espanhol, uma escova de prata, um isqueiro niquelado, uma faca prateada, estavam os cadernos com inúmeras anotações. Contou-me que nem precisou folhear para saber que eram os tais diários de Carmelinda Suárez y Ganaderya. Morrera solteira e sem conhecer o amor. Eu tinha grande interesse em saber detalhes da vida dessa intrigante mulher e, talvez, nos cadernos estivessem as explicações que procurava. Sempre colocara em dúvida a tese vigente de que nunca se casara por causa de um cachorro ciumento que impedia a aproximação, principalmente de três pretendentes. Apesar de engraçado, o causo não me parecia tão verossímil, porém, sinceramente, a história me parecia um tanto absurda, mas era o que diziam. Seria isso mesmo? 

Era uma tarde clara e quente daquele domingo de fevereiro quando deixei a Vila Rica de carro. Ia observando as antigas e queridas paisagens da infância, embora tão modificadas pelo galope nervoso do progresso que tinha chegado já há muitos verões por aquelas plagas. Não se via mais gaúchos pilchados, gente a cavalo repontando reses, mas tratores, máquinas agrícolas, colheitadeiras. Eram novos tempos, realmente. Para me distrair liguei o rádio e fiquei escutando um programa esportivo que repetia ladainhas sobre a dupla Gre-Nal. Mas até Porto Alegre tinha muita estrada para “bater casco”, como dizia o velho Turíbio, quando contava suas histórias de antigas tropeadas, escorado no balcão do bolicho. 

Agora não tinha mais bolicho, não havia mais tropeadas, mas na malinha de madeira que Luiz me entregou estavam os diários e a cada volta da estrada minha angústia aumentava. Quando acessei a Rodovia do Parque, com a visão ao longe dos morros e edifícios altos da Capital, já era noite. Lembrei-me dos cadernos e só imaginava o momento de abri-los e adentrar naquela história que a cada hora ganhava mais ares de mistério. Já em casa, retirei a bagagem e me dirigi imediatamente para o escritório. Então abri o primeiro caderno. (Continua) 


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