Linda e o ciumento

Linda e o ciumento

O ciumento mostrou-se implacável em seu projeto de não deixar Linda casar e nem amar ninguém

Paulo Mendes

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Dona Carmelinda Suárez y Ganaderya, a dona Linda, morreu aos 91 anos, deitada na sua antiga cama de molas, numa tarde tórrida de janeiro, solteira e intacta, como Deus a mandou ao mundo. Sozinha, mesmo sendo uma senhora abastada que estudara em bons colégios. Pretendentes nunca lhe faltaram, principalmente três moços que estiveram no limiar de se casar com ela. Mas um infortúnio ocorreu nessas três oportunidades. Essas foram geradas por uma alma ciumenta, corajosa e audaciosa. O senhor e a senhora, que estão me lendo agora, talvez nem acreditem, mas foi a pura verdade. 

Primeiro, foi um peão jovem e ambicioso, ginete com longas melenas loiras, olhos claros, que vencera uma prova de gineteada em pelo em Vacaria. Maneca Sarmento, que tinha umas chilenas de prata, com papagaios compridos, rosetas grossas, que as carregava para cima e para baixo. Tentaram levá-lo para a escola uma vez, mas ninguém conseguiu. Só queria estar em riba do lombo dos maulas. Num domingo que fora visitar Linda na estância Rincão da Serra, o ciumento estralhaçou os cabrestilhos das esporas a dentadas. Não apenas os tentos grossos e as correias especiais, as partes de ferro também, que ficaram retorcidas. Maneca, ao ver aquela desfeita, entregou a cuia, levantou-se furioso e rumou em direção ao rosilho. Montou e sumiu no mundo. 

Alguns anos depois, Linda estava ainda mais bonita. Linda mesmo. Ela era tão bela que um cantor afamado na época, multi-instrumentista, gaiteiro e violeiro, a viu na inauguração de um CTG lá no Potreirinho de Cima e se apaixonou. O sujeito parou até de participar de suas apresentações quase diárias só para ficar por perto da querida amada. Porém, certo dia, antes de um show, o ciumento entrou nos camarins e estragou as gaitas, os violões e outros instrumentos. O artista, aborrecido, foi-se embora e deixou Linda para trás. Nunca apareceu mais na Vila Rica. 

Carmelinda passou anos destroçada de amor, nem acreditava mais que pudesse se casar, quando um homem comprometido, fazendeiro respeitado, largou a esposa e filhos e se declarou a ela. Meio a contragosto, acabou aceitando o convite e, dias antes do casamento, o ciumento, corroído pelo ódio, atacou o noivo quando este sesteava depois do almoço de um sábado. Era vingativo e, com medo de algo que não conhecia, mas pressentia, rasgou o órgão genital do homem, que precisou ser internado às pressas e não morreu por pouco. Salvou-se, mas restou inutilizado. Aí, acabou de vez. 

Foi isso. O ciumento mostrou-se implacável em seu projeto de não deixar Linda casar e nem amar ninguém. Era um cachorro bonito mesmo, mas era um animal. Minha mãe, dona Mirica, sempre repetia “que barbaridade”. Até porque todos levaram o caso meio que na brincadeira. Uns diziam, “ah, mas ela nunca os levou tão a sério assim”. E outros: “foi cachorrada, era mandar embora aquele cusco idiota, metido a besta”. Outros, mais razoáveis, comentavam: “foi coisa do destino, a vida é assim, não era para ela ter casado mesmo”. E alguns, esotéricos, ligavam o caso a situações sobrenaturais: “Aquele cachorro era o Demo, o Coisa Ruim”. Nunca ninguém soube, mas quando começou a perder o viço, Linda nunca mais namorou. Viveu e morreu solita. Mirica alertava: “Nunca fique perto de um ciumento. É é um tipo que não divide afeto com ninguém.” 


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