Gaudério

Gaudério

Eu sou um gato, mas posso ser também a voz dos animais que ficaram perdidos por esses fundões de campo

Paulo Mendes

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O nome, este me deram porque andei de mão em mão, passei por várias cidades, fazendas, foi uma conjunção de fatores. Meu último dono, que foi embora para outras plagas, me chamou de Gaudério. Não foi por minha vontade, foram as contingências. Talvez tenha sido com os outros gaudérios também. Hoje, denominam assim qualquer um, basta usar bombacha num fim de semana. Numa casa onde vivi, um moço sabido citou Ortega Y Gasset, um filósofo espanhol, algo assim: o homem é ele mais sua circunstância. Aí eu pensei com minha visão de gato, e os animais são o que? E os gatos? E os cachorros, as vacas, os cavalos? 

Faz muito tempo que estou aqui, vivendo solito na tapera. Já nem sei exatamente quanto tempo se passou, nosso calendário é bem diferente do de vocês. Fiquei eu e minha circunstância. Com o tempo, também eu, um simples gato, comecei a precisar me ocupar de algo. Então chamei esse projeto de circunstância. E até que foi divertido. Minha vida anterior tinha sido cheia de aventuras, mudanças, idas e vindas, agora tudo parado. Eu comia ração importada e de uma hora para outra tive que me virar sozinho. Mas eu gosto, sou gato, tenho certo desprezo pelos humanos, não preciso deles. Nunca. Até acho que sou mais feliz agora, eu que tenho apenas minha alma bichana e minha circunstância. 
Para que não achem que estou inventando tudo isso estou escrevendo minha história. Ficará registrada para a chamada posteridade. Não é assim que vocês dizem? Duvidam? E como a estão lendo agora? Ah, viram, é por isso, vocês estão apegados a convenções e normas, ao curso normal da vida. Acham que os bichos não entendem o que vocês falam. Bueno, posso falar bueno? Claro né, sou gaudério por nome e sinal... De tanto andar por estâncias, minha comunicação virou regional, regionalista, gauchesca. Mas isso tem diferença? Para mim, nada. Ah, gosto dos programas de rádio de manhã, depois do meio-dia e os de final da tarde, sabe, de músicas tradicionalistas. Antes eles mandavam recados, mas agora com o WhatsApp pararam com isso. Que pena, era bem divertido, não era? 

Eu queria aproveitar este espaço, vejam estou falando como os apresentadores antigos, para mandar um recadinho para quem estiver me escutando. Opa, quem estiver me lendo... Eu sou um gato, mas posso ser também a voz dos animais que ficaram perdidos por esses fundões de campo. Quantos ficam sós, deixados de lado, o senhor e a senhora nunca ouviram falar disso? Das vacas leiteiras que ao ficarem velhas são vendidas para o matadouro? Os cavalos de lida também, enviados para virarem salsichas. Mas pouco me importei, nós gatos somos assim, desapegados. Gostamos mais das moradas, das paisagens, não confiamos muito nos humanos, mas também pudera. Vocês nos apresentam algo para que possamos confiar? Qual? Agora estou velho. Eu e a circunstância envelhecemos também, como tudo. Mas, quando chegar minha hora, terei ainda mais uma vida. Posso dar um salto, o pulo do gato. Tudo vai depender da circunstância.


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