Os filhos da terra

Os filhos da terra

São os filhos da terra, netos e bisnetos das primeiras recolutas, das primitivas andanças e da conquista do território

Paulo Mendes

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Quase todos nasceram enforquilhados no lombo do pingo, por assim dizer, de tão cavaleiros. Olhando à distância, parecem centauros cruzando o verde das coxilhas e várzeas. São madrugadores e recitadores de versos. Falam alto, acostumados que são a lidar com os bichos desde a madrugada até o descambar do sol. Tomam mates debaixo das ramadas, têm ouvidos sensíveis, ouvem rumores ao longe e trazem olhos de ver até no escuro. Vivem no campo, nas mangueiras e pelos galpões. Têm mãos calejadas, duras e pesadas, porém dentro do peito bate um coração terno e bondoso. São os filhos da terra, netos e bisnetos das primeiras recolutas, das primitivas andanças e conquistas do território. O tempo passa, o mundo se transforma, mas eles sofrem poucas mudanças porque corre em suas veias o mesmo sangue de antanho, dos avoengos de melenas brancas, aqueles que ergueram mangueiras de pedra e ranchos de pau a pique cobertos de capim santa-fé. 

Lá estão eles, os descendentes de Bibiana e do Capitão Rodrigo, os que se misturam entre ficção e realidade. São novas Anas e novos Rodrigos que moram em cidades, dirigem automóveis, usam tênis e calças jeans, mas também revolvem a terra, trabalham nas fazendas e granjas, tudo junto misturado. Afora os que permanecem entre os juncais, entre as macegas, os que pouco se metem nos burburinhos frenéticos das urbes, porque preferem os descampados, as solitudes verdejantes a se perder de vista, onde se ouve o piar do barreiro fazendo casa, o cantar dos galos nos poleiros, o balir das ovelhas chamando as crias, o relinchar dos cavalos nas estrebarias e o berro da terneirada no potreiro. 

Ainda hoje podem ser vistos repontando lotes de gado nas estâncias, trazendo-os para a mangueira, solitos ou em grupos, montados em Crioulos de pedigree, adelgaçados e reluzentes. Sobre máquinas agrícolas, arando, semeando e colhendo por dias e noites a fio. Esses filhos do campo nunca desistem, laçam, pealam e gineteiam como seus tataravôs, gente de marca e sinal. Eu os saúdo, irmãos das soledades campeiras, dos ermos solitários, dos fundões de corredor, das taperas carcomidas por tempo e esquecimento, aqueles que se embrenharam nos socavões da memória, nas bibocas, nos penedos e encostas. Volta e meia aparecem, surgem do nada, assustam perdizes nas várzeas que fogem em voos rasantes e, atarantadas, sucumbem, degoladas num fio de alambrado. 

Benditos sois vós, filhos da terra, netos dos descampados, bisnetos das pradarias, tataranetos de Gumercindo, Aparício, Flores, Honório, Barros e Osório. A cavalo gauchada de lei, lá vem outro ano, outras tarefas, novos dias e novas esperanças. Sei que enquanto um de vocês estiver montado no lombo desses corcéis retacos. ou de um trator, ou de uma colheitadeira podemos nós, aqui na cidade, ficarmos tranquilos. Não faltará alimento nas prateleiras, basta os gestores públicos proporcionarem condições para que o povo possa comprá-lo. Hoje, serei otimista, sonharei com nosso Estado unido e imbuído de paz e alegria, buscando novos formas e desenvolvimento, e, por outro lado, produzindo e preservando, numa comunhão de ideias e princípios. Para isso, confio nos filhos da terra, os que viverão para sempre em todos os sóis de teus dias, velho Rio Grande. 


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